O nada raro prazer de se matar

Sobre o vício de fumar

Já dizia Mário Quintana: “Fumar é uma forma disfarçada de suspirar”. O suspiro é uma expressão aérea da angústia, do alívio, é o escapamento de uma quantidade de ar e sentimentos maior do que podemos comportar. Nada estranho que tenha ocorrido aos homens preencher de fumaça o entra e sai de ar, arrancar um prazer deste automatismo do corpo. Para nós nada é natural, tudo fica impregnado de significados, contaminado de emoções. Quando estamos com problemas, ficamos sem fome ou comemos a casa e isto não coincide com as necessidades de reposição de energia do corpo. Glamourizamos a alimentação com maravilhas para ver, cheirar e saborear. Fumar é comer iguarias com os pulmões. O tabaco é como um ansiolítico curinga, ele se coloca no lugar de quaisquer incógnitas e instabilidades. Se não sabemos o que falta, deve ser o cigarro. Ao fumar, sentimos que era isto mesmo, se novamente a angústia vier, o alívio está ao alcance da mão. Além da química da nicotina, há o social: fumar conduz ao sucesso, empresta um certo Charm.

É irônico que um produto que causa adição possa se chamar Free, mas talvez não seja uma mentira completa, pois somos livres para nos matar. Paradoxal, o cigarro é vida e morte ao mesmo tempo. Fumar libidiniza a respiração. Pausada e prolongada, ela se torna um objeto de prazer, não uma função fisiológica. A fumaça torna o ar visível, enche-o de cheiro, conscientiza o ato de respirar. “Se fumo, estou vivendo, tem gente que não fuma e está morrendo, eu fumo sim”. Mas também o cigarro é morte, a cada vez que se fuma se arranca um pouco da vida que nos resta, como se tivéssemos controle do nosso prazo e quiséssemos uma forma prazerosa de liquidar com ele.

Desde que a sociedade cansou de pagar a alta conta do tabagismo, as propagandas têm investido no aviso dos malefícios do vício para a saúde. A questão é que isto não inibe os viciados. Inclusive, muitos fumantes brincam ao comprar seus cigarros, pedindo ao vendedor: “não quero aquele que causa impotência, me dá o do câncer de pulmão”. Por isso, outra modalidade muito bem bolada de combate ao vício tem sido os anúncios, dirigidos aos jovens, de que não fumar é cool, ousado, descolado. Não adianta só dizer que mata, é preciso elogiar a abstinência, melhor ainda, garantir que os não fumantes também sabem gozar a vida. Mas se teremos muito trabalho para erradicar este vício é porque o consumo do cigarro se encaixou como uma luva no mundo que construímos, o daqueles que acreditam que a satisfação mora num objeto de consumo perfeito.

09/07/03 |
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2 Comentários
  1. Mariana Pavani permalink

    Amei, tanto, esse texto. Estava buscando entender coko, hoje em 2020, o cigarro ainda pode soar sexy.

  2. josé marcio duarte permalink

    O hábito de fumar é ancestral. Usado há milhares de anos como ritual religioso.
    Não deve ser analisado apenas sob o prisma da medicina, é bem mais complexo.

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