O neto de Sherlock Holmes
Sobre o seriado House
Sou hipocondríaca o suficiente para emprestar, uso meus parcos conhecimentos de medicina para diagnósticos estapafúrdios: dor de cabeça em criança é meningite, em adultos é AVC, espinha é câncer de pele, todo sintoma é grave, toda doença é letal. Por isso recorro aos médicos, figuras encarnadas do salvador, que possuem os recursos para prevenir e remediar o mal temido. Nada nos estranha que recorrentemente eles tenham se transmutado em heróis, personagens literários e anti-heróis, como é o caso do célebre Dr. House, da série televisiva que leva seu nome (no Brasil, pode ser vista no Universal Channel ou na locadora mais próxima).
Gregory House é um médico controverso, aborda as investigações médicas com a mesma sagacidade de Sherlock Holmes, com quem compartilha também a pouca sociabilidade, a toxicomania (Holmes era viciado em cocaína, House em analgésicos) e a misoginia. A ele são destinados os casos perdidos e os ataca com racionalidade infatigável e uma fúria transgressiva, ousando quebrar protocolos, testar substâncias em humanos, enganar superiores e parentes. Através dessa aventura médica ele constitui conjecturas, hipóteses, planos de tratamento cujo sucesso funciona como prova do crime, assim como o fracasso é indício de que a investigação deve prosseguir. Sherlock por Sherlock, o que muda é o assassino: o culpado agora é o corpo.
O crime é um sintoma de uma doença social. Quando um assassinato ocorre, quanto maior sua relevância, mais nos questionamos sobre que tipo de grupo social constituímos. Já a doença pode ser causada por uma epidemia, um problema ambiental, mas na maior parte das vezes é um sintoma individual, e a sobrevivência pessoal nos interessa muito mais do que a saúde do coletivo ao qual pertencemos. Por isso, precisamos de um herói médico cujo enfrentamento com a morte seja de cunho pessoal, que não possua outra razão de viver do que salvar nossa vida.
Sherlock Holmes foi criado no final do século XIX pelo oftalmologista Arthur Conan Doyle, que assumidamente inspirou-se em seu professor de medicina, Dr. Joseph Bell, conhecido por seus brilhantes diagnósticos. O famoso detetive inglês utilizava dos mesmos raciocínios da semiologia médica para desvelar crimes e mistérios. Pouco mais de um século depois, a pedido do público, o Dr. House volta a essas origens, mas com um acréscimo fundamental: ele sofre dores constantes, manca e usa uma bengala. Gregory House é marcado pelas seqüelas de uma doença que não foi corretamente diagnosticada nem tratada, é por isso também um intratável, mal humorado e avesso ao contato pessoal, afoga suas mágoas em boas doses de whisky e opiáceos. Enfim, ele padece de corpo e alma. Por isso, além de usar seu brilhantismo para denunciar a incompetência dos outros médicos, ele conhece por dentro a dor e o medo, elementos intrínsecos da doença. House é médico e paciente, ele também é um de nós. Por isso, para o novo ano, desejo saúde para dar e vender, ou em caso de azar, que encontremos um médico maluco como esse.