o precipício de cada um
A vertigem é o medo de pular.
Subi na montanha e nenhum deus falou comigo, não tive a sorte de Moisés e Maomé. Mas sem dúvida encontrei algo grande: o pânico. A paisagem altíssima era de tirar o fôlego. Para os outros turistas do meu grupo aquele era um momento de deleite, para mim uma cilada. No topo, enquanto os outros tiravam fotos e procuravam novos ângulos para contemplar a maravilha, fiquei encostada na parede de pedra, sem olhar para baixo, refém das golfadas de medo. O precipício me sussurrava ameaças de morte. Sem opção, tive que descer com a ajuda paciente de companheiros de caminhada. Desci sentada, vexada, prometendo nunca mais ignorar essa covardia.
O medo de cair afeta alguns e é irrelevante em outros. Muitos têm a tranquilidade de deixar os olhos passearem além do parapeito, da beira. Parece óbvio, qualquer um teria direito a esse prazer. Afinal, se você estiver apenas olhando e não mexer nenhum músculo obviamente não cairá. Meus sentidos negam-se a essa conclusão lógica.
Pelo menos os sonhos são democráticos: todo mundo alguma noite despencou no vazio, numa visita onírica ao pesadelo da vertigem. Por sorte, o despertar sempre ocorre no limite do encontro fatídico com o chão, mas acordamos suados, coração acelerado, os olhos em busca de âncora. A escuridão do quarto é macia quando emergimos de um pesadelo. Esse tipo de sonho ocorre porque a angústia, sentimento universal, se parece muito com a vertigem.
Para o angustiado não há nada nem ninguém que garanta sua segurança, muito menos ele próprio. Mesmo que pontuais, as crises de pânico, que são como grandes ondas de angústia, aparecem alguma vez na vida de todo mundo. Elas são experiências de desamparo, nas quais fica-se indefeso como um recém nascido. Tudo se apaga, ficamos à mercê de um perigo difuso mas intenso, reféns do próprio corpo. Só sabemos do medo de que o coração pare ou dispare, da pele sensível que crispa-se a qualquer toque. Cabelos eriçados, olhos cegos, ficamos tontos, nauseados, imobilizados, presas fáceis da morte. Nesse momento, o corpo é “ele” e o pensamento é “eu”, não somos a mesma coisa.
Nas alturas, em pânico não vejo a paisagem, o vazio parece ditar ordens ao meu corpo. E chama, pede que me entregue, balance, afrouxe as mãos que me prendem à rocha, coloque o pé num lugar errado. O perigo que ameaça os medrosos de altura é interior, não é terremoto nem deslizamento de terra. É o medo de ir ao encontro da morte movidos por uma força maior que não dominamos.
Invejo a sorte dos senhores do seu equilíbrio, a quem a vertigem não lembra quão sutil é elo o que nos liga à vida. Mas me consola acreditar que o medo de deixar-se cair é apenas uma das formas pelas quais a morte se insinua a cada um. A fragilidade é universal, cada um tem a sua. Você não?
Certa vez, anos atrás, estava eu no teleférico de Serra Negra. Eram apenas cadeirinhas em que cada pessoa se sentava e cuja “trava de segurança” consistia em uma barrinha de ferro acionada pelo próprio usuário. A certa altura do percurso, já na metade do caminho, as cadeirinhas pararam e lá fiquei eu, pendurado a uns 20 metros das copas das árvores. Durante uns 15 minutos fiquei controlando o meu desejo/pânico de levantar a barrinha e realizar a minha vertigem…
Muito bom e muito bem explicado. Só quem já teve, ou tem “síndrome do pânico, sabe exatamente do que a escritora está falando.
Adorei o texto. Cheguei aqui por acaso, a partir de um link no Facebook colocado pela Soraia Bento.
Há muito tempo não lia um texto tão denso, intenso e delicado.
Em poucas linhas e poucas palavras você resumiu de maneira lúcida e lúdica o sentimento de se perder o chão, com a divisão de um ele (pensamento) e um eu (que sofro), vilão e vitima me habitando.
Essa é luta de todos os dias, acontece até nas coisas mais banais.
Dominar a si mesmo é uma arte.
Grato pelo texto
Celio dos Santos – Curitiba