O privilégio do azar

Um pessimismo de bolso que é um tributo ao otimismo

Na fila do caixa do supermercado, por várias vezes, disputei pelo privilégio do azar. Estabelecimento lotado, filas grandes e lentas, escolhemos uma: obviamente será aquela em que vai dar algo errado, o cartão que não funciona, um produto sem preço ou estragado. A fila que não escolhemos sempre anda mais rápido. Quando finalmente nossa vez chegou, a fita da caixa registradora acaba e é preciso parar tudo para trocar. Certa feita, frente a essa situação, declarei em voz alta que só podia ser comigo, é sempre assim! Uma senhora que estava atrás de mim insistia em que o motivo do percalço era a presença dela. Assim, meio rindo, meio falando sério, ficamos discutindo o protagonismo daquele pequeno azar.

Essa demonstração pública de pessimismo, na qual reivindicamos ser a causa do que dá errado, é no mínimo intrigante. Afinal, qual seria a vantagem a ser alardeada de ser o escolhido para coisas ruins, mesmo que de pequena monta? Justamente porque trata-se de vantagem: a idéia de que os pequenos azares substituem os grandes.

É comum ficamos temerosos de que alguma catástrofe virá para acabar com a festa quando algo bacana está para acontecer. Para mim não há viagem de férias em que não tenha pressentimento de que alguma desgraça vai me impedir de partir. É uma espécie de culpa, como se o prazer antecipado devesse ser punido. No fundo me espreita o pânico de que o destino tome providências para impedir a realização desse desejo. Estaria certo usufruir desse prazer? Por que seríamos merecedores de um passeio, de um encontro muito esperado, uma refeição cuidadosamente planejada, uma homenagem recebida? Alguém vai aparecer para impedir, revelar nossos defeitos, nossos pecadilhos, vai levantar a mão como num casamento quando se pergunta se há alguém que se oponha à união. Ficamos culpados, pensando que talvez estejamos cometendo alguma injustiça, será que não haveria outra pessoa que teria mais direito a esse privilégio?

É aqui que entra a utilidade dos revezes insignificantes: não serviriam para aplacar a ira do azar? Como se fossem oferendas, sacrifícios: manda-se para a fogueira da culpa uma bobagem, esperando que ela queime no lugar de uma verdadeira desgraça. Depois disso, o que tinha para dar errado já foi, tudo transcorrerá maravilhosamente.

Esse pessimismo de bolso acaba sendo um tributo ao otimismo. Somos mesmo muito paradoxais. Com esses pensamentos estranhos acreditamos estar controlando o destino, garantindo que será favorável, já que sacrificamos à desgraça alguma cota de tempo, paciência ou dinheiro. É bom saber que, apesar de resmungões, somos otimistas incorrigíveis e perseverantes. Nesse sentido, concordo com Valter Hugo Mãe que escreveu: “Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”.

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