O Sexto Elemento

Sobre o filme Quinto Elemento de Luc Besson

Muitos hoje se perguntam por que trazer crianças a um mundo tão violento, porque continuar a desenvolver uma condição humana que cada vez mais revela-se egoísta e cruel. Em nome de que valeria a pena seguir vivendo e apostando na humanidade? É em torno destas questões gira o filme O Quinto Elemento (dirigido por Luc Besson, 1997).

A crítica em geral não gostou do filme. De fato ele tem dois defeitos: não é suficientemente chato como para ser apreciado pela intelligentzia e pior, ele faz sucesso, isso é imperdoável para um pedigree intelectual. A questão mais importante não nos parece ser a profundidade do filme mas o que nele faz embalar alguns dos nossos sonhos. Tantos não podem estar enganados: o filme dá a temperatura de algumas esperanças contemporâneas. Mais vale nos dedicarmos aos que tem feito filas para assistir ao filme do que aos eternos narizes torcidos à cultura de massa. O que ele tem de tão atraente?

A chave está na combinação de algumas temáticas que sempre dão certo. É um filme sobre a força e a importância do amor. Com certeza algumas pessoas que foram fruir o visual de Moebius-Gaultier vão debochar, mas gostem ou não, assim é. Em segundo lugar é um filme sobre a religiosidade possível de nosso tempo. Só em terceiro plano podemos creditar o sucesso ao belíssimo desempenho visual e ainda  lado a lado com a nossa insaciável curiosidade quanto ao futuro. Percorrendo estes pontos há ainda um eixo central que perpassa a todos que é o discurso sobre a multiplicidade de referências a que estamos submetidos e o amor como única unidade possível em um mundo caótico.

No filme, a salvação do mundo depende da junção de quatro elementos (fogo, ar, água, terra), simbolizados por quatro pedras, com um quinto, um salvador, um ser cuja perfeição precipitaria a junção dos outros elementos. Aproxima-se de nosso planeta uma espécie de bola incandescente, encarnação do mal, que aumenta de tamanho a cada ataque dos terráqueos, alimentado-se da violência que lhe é dirigida. A ameaça só poderia ser detida pela luz emanada do encontro dos cinco elementos. Porém na hora derradeira, no momento desta cópula salvadora, só um sexto elemento elucida a dúvida de se a condição humana vale a pena ser salva: o amor. Uma declaração de amor é a chave que abre as portas da salvação, sem isto o quinto elemento não funcionaria. Estranha matemática, este sexto elemento não é contado embora seja o catalisador dos outros cinco.

Os quatro elementos ou substâncias imutáveis, consideradas raízes de todas as coisas, são uma criação da antiguidade ocidental, assim como as quatro qualidades (quente, frio, seco e úmido) e as duas forças básicas: atração e repulsão ou amor e ódio. Não é apenas uma concepção da matéria, é uma dinâmica onde cada elemento tende ao seu lugar, a terra no chão, a água envolvendo a terra, o ar envolvendo e acima dos dois e o fogo com o seu lugar nas esferas celestes. O filme é um mergulho em duas direções: para frente na tecnologia e para trás nas concepções da ciência e do mundo. A maioria das pessoas não percebe os avanços científicos como mágica? Quem está ao par de como funciona um simples telefone, um computador, ou ainda sabe a diferença entre uma bactéria e um vírus? Cientificamente falando somos todos quase analfabetos. O mundo dos objetos e da ciência invade o habitante comum como uma teia inexplicável de elementos dispersos e incompreensíveis.

O quinto elemento é um ser celeste perfeito que faria com a junção dos quatro anteriores uma hierogamia capaz de manter o mal afastado do nosso planeta e do universo inteiro. O ser perfeito é uma mulher, estranho ser perfeito, ora toda poderosa, senhora de todo saber do universo, capaz inclusive de falar a língua de Deus, ora de uma fragilidade cuja sobrevivência depende dos braços e do amor de um homem. De qualquer forma só ela e umas pedras que simbolizariam os quatro elementos seriam capazes de deter mais uma vez o mal, já que, ciclicamente, a cada 5.000 anos solares, o mal tentaria eliminar a vida do universo.

Um ser não tão perfeito assim, pois ama e necessita ser amada, portanto é incompleta, falta-lhe alguém. O sexto elemento, o amor, é capaz de dar algum sentido a este caos generalizado. A subjetividade da nossa época tem o mesmo problema. ali onde pensamos viver só para usufruto próprio, na auto-suficiência que tanto idealizamos, encontramos um vazio ao qual o amor pode dar algum preenchimento. No amor encontramos o olhar que dá o rumo, a teleologia de nossos atos. Por isso aqui está uma mulher, e não um homem a encarnar a subjetividade moderna. A mulher, por sua natureza ou história, não entraremos em debates feministas, sempre teve no amor um eixo que transcendia sua inserção a causas transpessoais. Se participou na guerra, na política, na arte, em geral o fez amando. Nesse sentido hoje tendemos todos ao feminino. Na medida em que caminhamos para ser cada vez menos sociais, tendemos à unicidade, à imparidade; resulta natural encontrarmos no amor o único espelho que testemunha nossa existência.

Por ocasião da estréia em Holywood, as queixas que os críticos dirigiram ao filme davam conta de um “roteiro incompreensível”. Argumentaríamos que realmente, nosso cenário cultural contemporâneo obedece de fato a um roteiro incompreensível. Num bricabraque frenético, amontoamos quaisquer referências que definam uma identidade, uma unidade qualquer que proteja contra o medo da dissolução subjetiva. O sentimento do mundo se esvaindo de significados é bem conhecido do angustiado e assombra o depressivo. O ataque de pânico é o comportamento standart de nosso tempo, em outras palavras, não há ponto fixo no universo que dê garantias de coisa alguma. Ocorre que o panicado, o angustiado e o depressivo somos todos nós, seja às vezes ou sempre ou talvez num momento isolado da vida, seres humanos modernos, não podemos mais fingir a normalidade.

Nossa profissão obriga a viver quotidianamente em contato com aquilo que todos os outros conseguem escantear para algumas horas do seu dia ou, no pior dos casos, da noite: a angústia. Aprendemos que ela surge quando o mundo de alguém entra em uma espécie de vácuo, no qual tudo flutua em volta, como na ausência de uma gravidade que permitisse às coisas encontrarem o seu lugar. É neste momento que a angústia chega ao seu orgasmo, ondas de suor e tontura perpassam infinitos segundos e crente de que o fim está próximo o sujeito emerge, não para a morte, que parecia eminente, mas para o seu banal cotidiano. Pobres humanos conhecedores da angústia nunca nos estranhamos em demasia com a idéia da “destruição total”, da “ruína final do planeta” tão castigada na fantasia contemporânea. Por sorte os super-heróis estão sempre a salvar o mundo das forças do mal que estão sempre dispostas a acabar com tudo.                          Daríamos tudo para dispor da receita que finalmente traria uma harmonia às nossas vidas tão confusas. Algo tão simples como heróis tipo Korben Dallas ou seres perfeitos como Leelo. Porém, na falta destas soluções, uma das formas possíveis da felicidade é justamente algum tipo de paz, um convívio possível com o que estamos vivendo sem essa temível sensação de que falta alguma coisa, de que tudo está fora do lugar.

Em tempos de individualismo e supressão das identidades nacionais, via uma efetiva unificação econômica e cultural dos países, temos uma extrema dificuldade em saber de onde viemos, a que ou quem pertencemos e em nome de que seguir andando. A altíssima incidência dos transtornos ligados à angústia, à depressão e ao pânico nas neuroses modernas depõe de um mundo de gente que está constantemente a perder o chão. Não sabemos que diabo fazer com as diferenças em tempos de cada um por sí. Se a trajetória é teoricamente independente da origem, somos todos self-made. Acreditamos que podemos construir um destino independente da influência dos pais e antepassados e o sucesso seria uma questão de perseverança e inteligência. No auge da onipotência manejamos nosso destino como um problema exclusivamente pessoal. O importante é que o sujeito seja feliz, não importa o que os outros pensam se ele mantiver o estilo. Enquanto isso, em seu redor flutuam seus pais, sua nacionalidade, sua religião, sua raça, seu sexo, as mitologias que cresceu ouvindo. Homem ou mulher, luta por uma identidade sexual em tempos hermafroditas. United Colors, estetiza-pasteuriza o seu físico de acordo com sua especificidade, negra, branca, índia ou oriental. Falante de um idioma, idolatra o inglês-esperanto, esquecendo que “minha língua é minha pátria”. O novo cidadão do mundo não tem atlas que organize o seu banco de dados.

Assim sendo, não nos parece tão estranho que um motorista de táxi, que na verdade é um herói do exército, precise reunir elementos tão exóticos, desconexos e dispersos pelo universo como uma coleção de pedras custodiada pela igreja, mas que deve ser resgatada junto a uma cantora lírica extraterreste que mais parece um lagarto azul. Junte todos os ingredientes numa caverna egípcia e o universo será salvo, por que não? 

A religiosidade moderna que não pegou o retorno fundamentalista funciona como um supermercado onde cada um toma o que quer. Pegamos muitos produtos porque não há caixa registradora. Cada um vai para casa com o que quiser na sacola. Aliás, quanto mais se pega menos se paga porque menos estaríamos assujeitados a crenças que venham a cobrar ritos, práticas e principalmente uma ética. De cada uma só o que convém, assim todas ficam leves. Na religião o acréscimo subtrai, quantos mais elementos mais um dilui o outro. Podemos hoje ser católicos, acreditar em fadas e duendes, ler um pouco de astrologia, apelar para o batuque nas horas difíceis, entrar em contato com os entes queridos que já se foram num centro espírita e tudo isso não se apresenta como contraditório.

Um filme que resgata crenças antigas e mistura com extraterrestres só faz agitar um pouco mais a confusão que vivemos. Até porque esperamos ansiosamente por extraterrestres, eles seriam uma alteridade, dariam uma unidade à dispersão que vivemos nesse planeta. Esperamos ainda que os extraterrestres venham como inimigos, igual à Independence Day, finalmente os terrestres estariam fazendo um conjunto único tendo um inimigo em comum. Poderíamos olhar para cada semelhante (só então o sentiríamos semelhante) como um da tribo.

Dentro do caldo mitológico proposto o catolicismo tem um destaque. Quem realmente deveria estar contente com filme é a igreja católica, mais do que isso, o filme deveria ser abençoado pelo papa. Traz excelentes notícias para a igreja, prediz que ela vai sobreviver à crise que vive e que só ela tem uma comunicação com potências superiores. Enfim alguém de fora diz que ela é sabedora de verdades transtemporais. Nesse ponto o filme é muito católico. Um dos heróis é Cornelius, um padre inteligente e mundano como não se via desde o simpático padre Brown de Chesterton. Porém, a mitologia é mais ampla, transcende ao catolicismo. O pano de fundo é a eterna luta do bem com o mal mas isso fica misturado as tradições mitológicas orientais que pressupõe uma luta eterna da ordem contra o caos. O filme inclina-se mais a uma tradição ocidental maniqueísta mas em alguns momento o mal fica identificado ao caos.

O filme é um panfleto pacifista, isto o torna politicamente correto e muito simpático. Distribui tiros e socos a torto e a direito, mas seriam caminhos tortos para uma mensagem pacifista. Mostra armas ultra sofisticadas, mas segue apostando na inteligência contra a força bruta. Diante dos mistérios que encerra a essência do mal da perversão e da guerra só nos restaria apostar no amor. Respostas agressivas só gerariam mais agressão ainda, o mal cresceria e se alimentaria da intolerância e do ódio. O príncipe das trevas está representado na figura de um Hitler futurista que faz comércio de armas e proselitismo bélico, é claro.

A ficção científica alimenta-se da angústia em relação ao nosso futuro pessoal e coletivo. Temos com a ficção científica o mesmo comportamento dos que vão à cartomante. Sabemos que ali não está toda a verdade sobre o futuro, mas qualquer esmola serve tal é nossa sede. O futuro apresenta-se como o único espaço de uma utopia, de sonhar com qualquer mundo mais organizado, mais humano ou ao menos que faça sentido. Ultimamente a ficção tem sido dura conosco: no futuro retornaríamos a barbárie. O Quinto Elemento rompe um pouco com isso, imagina um futuro não tão apavorante, é um novo olhar sobre o futuro.

O filme é desigual, esteticamente talvez ajude a desenhar nosso futuro, mas a mitologia da trama não tem mais consistência do que a dos Cavaleiros do Zodíaco que seu filho assiste. Um roteiro um tanto barato, com uma mensagem que só o amor constrói aliado com um excelente impacto visual, num mundo cada vez mais estetizado, são os ingredientes certos, ou seja, tem tudo para ser um sucesso.

Como hoje estamos francamente perdidos quanto aos rumos éticos compensamos pelo estético. Não sabemos para onde vamos, mas sabemos que temos que ir bem vestidos. É certo que o hábito não faz o monge, mas quanto menos ele se sente monge mais vai precisar da investidura do hábito. O filme é bem o retrato do caos e da hipertrofia do imaginário que vivemos.

Publicado no Jornal La Cosa Freudiana, Diretório Acadêmico da Psicologia, UNIJUI, Ano I/ número 2, setembro de 1997

Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Uma Odisséia na Linguagem – Número 87, Ano IX, Janeiro 2001

19/01/01 |
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2 Comentários
  1. Dorotéia permalink

    Muito bom o questionamento do mundo moderno.

  2. Mauro Franco permalink

    Sei que esta observação é de 2001, no entanto devo comentar, a mulher, no caso, é o espaço, o que hoje eles chamam de campo de higgs. Deste espaço é possível acessar a informação que origina tudo e tudo forma usando os quatro elementos, para fazer isto usa-se a atração e a repulsão (no caso, uma associação com a atração leva a força oposta, repulsão, a impedir o choque com o asteroide negro, uma escolha foi feita). O sexto elemento, na verdade, é a informação.

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