O sonho Piratini e a identidade gaúcha

Hipóteses sobre a problemática da identidade gaúcha versus a brasileira

Existe uma fantasia que embriaga muitos de nós: o Rio Grande do Sul seria uma pátria dentro de outra pátria. A experiência farroupilha teria deixado resíduos de uma nação que, se não a fizemos de fato, ainda viveria nos pagos da nossa imaginação. Como nunca foi construída, sendo só um sonho, podemos projetar na República Piratini todo nosso anseio por uma pátria melhor: uma nação de liberdade e fraternidade. Sozinhos, livres do Brasil, teríamos feito um belo país.

Nossa história entre os regionalismos brasileiros de fato é particular. Tivemos, é verdade, um passado separatista e um sonho de independência, assim como passamos por muitos outros fatos tão importantes quanto este e nem sempre tão nobres. A questão é que para muitos o anseio pela República Piratini seria nossa passagem fundadora, o momento mais marcante da nossa identidade gaúcha. Seríamos brasileiros por opção e isto nos teria deixado uma eterna alma dupla. Poderíamos ter sido um país e não fomos, então que o Brasil nos agüente divididos entre uma história que foi e outra que poderia ter sido, sempre na dúvida quanto à escolha certa.

Com isto o gaúcho faz uma exceção entre as identidades regionais, pois ser gaúcho é algo que deveria estar dentro de um conjunto maior que seria ser brasileiro. Não é assim que funciona, não existe esta hierarquia, são duas identidades que podem se superpor ou não. Por exemplo, ser carioca é a expressão de uma brasilidade particular, o gaúcho não, o gaúcho se vive como “brasileiro estrangeiro”. Em alguns momentos podemos ser brasileiros, mas se esta identidade não nos serve temos na manga a identidade gaúcha.

O passado se conta desde o presente, a história não é só o que foi, mas o como é contada. Onde começa o mito e onde termina a história é sempre um terreno movediço. Desde o pós-guerra, como resposta a globalização daquele momento, existe um movimento que construiu uma face para o gaúcho do passado. Inventou-se uma tradição para nosso estado, nela divinizamos o gaúcho, o preenchemos de qualidades e, aos nossos olhos, aquilo que construímos nos parece belo. Que faça bom proveito quem nisto acredita, mas sinceramente, esta peça de ficção não nos aproxima de nós mesmos.

Admiro os protagonistas deste movimento mais do que sua obra. Não vou tomar todos os aspectos desta utopia passadista, nem do que ela fez por nós, aliás, está para ser contada a extensão de sua invejável eficácia espalhando CTGs por todo o país. Interessa-me como ela reforçou o separatismo e nos distanciou do Brasil, ou em outras palavras, como a província pode transformar seus defeitos em virtudes.

Convenhamos que a identidade nacional também não ajuda, pois o que é ser brasileiro não possui uma resposta fácil. Uma identidade nacional firme diluiria um pouco nossas fantasias independentistas. O Brasil não se sente latino-americano, tenta esquecer sua origem portuguesa e acredita que é um país branco. Temos enquanto nação um caminho árduo até nos olharmos no espelho de frente. A questão é que justamente nisso somos tipicamente brasileiros: quando construímos uma imagem que nega as filiações e as origens. O filho faz ao pai aquilo que este fez ao avô.

Uma das paixões nacionais é contar piadas de português, eles invariavelmente são apresentados como burros e tão ingênuos que não sabem perceber as sutilezas do mundo. Este fenômeno é comum entre povos muito semelhantes que querem se diferenciar, Freud chamava de narcisismo das pequenas diferenças. Ora, o fundo destas piadas é negar o quanto ainda somos lusitanos, o quanto negamos e desqualificamos nossa origem. Existem variantes: como teria sido melhor se tivéssemos sido colonizados pelos holandeses…

No plano pessoal existe uma fantasia recorrente, quase todos já a experimentamos em algum momento da vida: colocamos em dúvida se somos mesmo filhos de nossos pais. A fantasia tem outras fontes mas a que nos interessa é: se não somos filhos destes pais tão imperfeitos podemos imaginar ser filhos de algo melhor. Nisto gaúchos e brasileiros estão irmanados, ficamos sonhando que nossa história tenha sido outra.

Temos no Brasil tantas identidades regionais distintas, o que a nossa teria em particular? O que afinal faria a nossa especificidade? Que traços marcantes teria o nosso povo sulista que nos diferenciaria do resto da Brasil? E atenção, tais traços não só nos diferenciariam como nos fariam melhores, afinal nos temos em grande conta. As respostas a estas perguntas ficam vagas no máximo são tirados do bolso uso e costumes mais para fakelore do que para folclore. Não resta dúvida que somos um pólo cultural fértil e que aqui se produzem coisas diferentes, mas só desconhecendo o resto do Brasil para postular isto como único.

O problema é que ser gaúcho é menos uma essência, ou seja, espremendo sai muito pouco suco, do que a força da nossa paixão por se diferenciar do Brasil. Os tradicionalistas e separatistas que me perdoem, mas o que mais queremos é que o Brasil nos reconheça como não sendo uma província. Como este olhar de aprovação raramente vem, desdenhamos o centro do país e reafirmamos nossa autonomia, se não nos aprovam nós os reprovamos.

Nosso separatismo latente é a forma de manifestar esta dinâmica truncada de reconhecimento mútuo que temos com a nação. Teimamos que seja possível uma identidade sem pensar o lugar que ocupamos no Brasil. Nesta lógica o Brasil, para nós, é também algo para ser conquistado, a imagem dos cavalos amarrados ao obelisco durante a revolução de 30 faz parte do nosso acervo mítico a este respeito.

Isto não quer dizer que o gaúcho ame menos o Brasil do que o resto dos brasileiros, apenas os caminhos de seu amor são tortuosos. Nossa paixão é sermos diferentes do Brasil, podemos até ser mais brasileiros do que os brasileiros mas respeitem nossa diferença. Nossa atual identidade gaúcha nos faz abrigar a contradição de amar um país que não seria bem o nosso.

Será que dá para sair dessa? Será que um dia poderemos nos sentir brasileiros sem senões e poréns? Acredito que sim, mas se realmente quisermos teremos que repensar quem teria sido o gaúcho. Pensar como afinal teriam sido nossos fundadores e tentar uma versão menos romântica e idealizada. Eu tenho uma pista: quando penso nisso lembro muito dos atuais sem-terra. Afinal, quando nossos antepassados chegaram aqui tinham apenas a cara e a coragem, viviam de esperanças, eram sem nada, miseráveis, famintos, e brigões. Hoje ninguém leva tanta pedrada como o MST, talvez por isso mesmo, por nos lembrarem quem foram nossos avós, e então, que na nossa origem éramos bem mais pobres e menos nobres do que gostaríamos.

Caderno de Cultura Zero Hora
19/09/02 |
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