O tabu da morte
Texto sobre as dificuldades de elaboração da morte
“A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”
Norbert Elias
No final do ano passado, assistimos à crise em torno da doença de Ariel Sharon, que teve um grave derrame cerebral quando estava no centro da vida política israelense. Sua ausência gerou tanta confusão que chegou a cogitar-se lançá-lo como candidato à próxima eleição enquanto ele estava hospitalizado em coma, com prognóstico de sobrevivência reservado. No Brasil, duas décadas atrás, sofremos a agonia de Tancredo Neves, transmitida em cadeia nacional enquanto, nos bastidores, os políticos encontravam uma saída para a nossa frágil democracia. Já o papa agonizou em praça pública, em tempo real, via satélite. O espetáculo público da doença e morte desses homens ilustres, os boletins médicos televisivos que esclarecem detalhes da decadência de seus corpos, os cortejos fúnebres monumentais, até fazem parecer que temos lugar para a morte em nossas mentes e em nossa sociedade.
Mas essa atenção e homenagens não significam que estejamos habilitados para lidar com o assunto, morrer é ainda para nós um tabu. De todos os desafios que se nos apresentam, a compreensão da morte é das mais inglórias tarefas. Depois de um acidente ou duma doença ter nos arrebatado alguém, tendemos a recobrir o fato de uma explicação qualquer: se tivesse ido por outro caminho, em outra hora, talvez o acidente seria evitado, se tivesse levado uma vida mais assim ou assado, não teria adoecido. É triste, mas todos sabemos que não é bem assim. Aos inconformados com este non sense, resta a religiosidade, que oferece algum consolo quando a lógica não ajuda.
Os suicidas são rebeldes, que não querem esperar sentados à chegada da morte. Decidem seu fim e a sociedade os castiga por isso. Repousam fora de campos santos e suas almas pagam pela eternidade a ousadia de desafiar o destino. Assistimos recentemente alguns lances da luta de duas inválidas inglesas pela eutanásia, acompanhamos o debate acirrado sobre o uso de embriões humanos em experiências científicas. A mínima centelha de vida merece total respeito… quem nos houve parece que somos os campeões da vida.
Mas são a guerra e o assassinato os maiores e piores atos de rebeldia, pois seu móvel é a morte, sua verdadeira arma. É aqui que o homem mostra querer rivalizar com o destino ou com o criador, quando decide quando será o fim da vida alheia ou ainda colocá-la a serviço de seus interesses. Sem os pruridos que cercam os debates de bioética ou outras éticas, cometem-se genocídios, assassinatos ou “omissocídios”. Por exemplo, o noticiário internacional sobre a África ilustra o descaso que mata crianças e torna o debate sobre o uso de embriões quase uma piada.
Recentemente enfrentamos uma polêmica nacional sobre a racionalização do uso das UTIs. A proposta, que sumiu da mídia junto com a discussão que suscitou, era de que a indicação de ocupar um leito nas Unidades de Tratamento Intensivo ficasse restrita aos pacientes com condições de beneficiar-se dos seus recursos técnicos. A sistematização dessa prática, acabaria deixando aqueles que vão morrer livres de que isso ocorra em ambientes sem intimidade e distantes das pessoas queridas. O problema é que, em geral, essas mesmas pessoas queridas sentem-se frágeis para suportar a dor e a impotência de assistir a uma morte para a qual ainda, ou talvez nunca, estarão resignados. A UTI acaba funcionando como uma barreira de proteção, onde aqueles que morrem ficam junto dos que estão acostumados com isso. De um lado os moribundos e a medicina, de outro os mortais despreparados. O problema é que o corpo médico também é humano e suscetível as mesmas falhas, o convívio com a morte nem sempre os torna mais sábios. E é preciso dizer com todas as letras: a UTI é inúmeras vezes utilizada para administrar a separação entre os vivos e os que estão morrendo, e não para salvar vidas.
A história da moça americana, cujo corpo morto-vivo passou 15 anos à mercê do fanatismo possessivo de seus pais é um exemplo do quanto podemos ser egoístas. Quantas vezes ainda será preciso prolongar inutilmente a vida de pessoas sem esperança, pela nossa incapacidade de suportar a morte? Ou, como no caso dos homens públicos, para ganhar tempo para administrar sua ausência?
Não aprenderemos a suportar o insuportável facilmente. Por isso quem está envolvido com uma morte precisa ser acompanhado de cuidados especiais. É necessária uma estrutura para os pacientes terminais e seus familiares, que inclua o cuidado para que o doente não tenha dor, assistência psicológica e religiosa para os que partem e os que ficam. As instituições de saúde servem para melhorar a qualidade da vida e isso, por mais paradoxal que pareça, significa melhorar a qualidade da morte.
Despedir-se de alguém, sabendo que um dia será nossa vez, é um antídoto contra a perigosa onipotência que nos desumaniza. A vida é um bem passageiro, escorregadio e sem prazo de validade escrito na embalagem. Somos tanto mais inteligentes para lidar com a morte, quanto mais pudermos aceitar nossa finitude.