O tabu do compromisso
Sobre o livro de quadrinhos Kiki de Adão Iturrusgarai
Kiki deve ter por volta de quinze anos e só pensa naquilo: é inexperiente no sexo, tem a língua solta, fica com uns meninos meio bobos, fantasia com casamento e maternidade e quer se livrar da virgindade do modo mais rápido e prático possível. Ela nasceu do traço do cartunista Adão Iturrusgarai, cresceu nas tiras publicadas na revista Capricho o hoje protagoniza uma compilação chamada “Kiki: a primeira vez” (Ed. Devir). As adolescentes como ela vivem de fato uma liberdade que para suas avós era utópica. Agora a perda da virgindade é uma opção pessoal, pode não ser orgástica, mas raramente é traumática, não é preciso contas à sociedade sobre este momento, sequer aos seus pais (a quem no máximo manterá informados) e seu hímen tampouco é prêmio para homem nenhum. Além da iniciação sexual, o assunto de Kiki é o desafio de lidar com o medo de se envolver e com a total ausência de romantismo das relações.
A anti-romântica personagem Aline, do mesmo autor, é uma jovem que vive com dois rapazes e tem uma vida erótica bem divertida. Mesmo se juntar estes dois, ela não faz um, pois não passam de garotões imaturos e inúteis, que se apavoram quando ela lhes exige qualquer coisa que não seja sexo. Porém Aline prefere ter dois namorados sempre excitados a um mais maduro, que às vezes esteja ocupado com outra coisa que não ela.
A vida erótica dos jovens e de alguns adultos funciona como uma praça de alimentação de shopping, basta chegar nos diversos balcões e provar pratos de todo tipo. Por outro lado isto é cansativo, é preciso levantar, pedir, escolher e pagar a cada vez. Quando estas jovens personagens falam em romantismo e casamento elas se fazem porta-vozes de um contraponto, da vontade de entrar num restaurante e comer calmamente da sopa à sobremesa e só levantar e pagar no final. Mas esta modalidade de relação estável contava com a ajuda da vigilância, do cerceamento, de tal forma que o casal nunca estava a sós no leito, sempre parecia haver alguém interessado em julgar a intimidade deles. A sociedade funcionava como uma alteridade e a dupla não temia se sufocar, engolindo-se ao estilo “Império dos Sentidos”. Já o sexo sem culpa, este novato no território do amor, utiliza o ciúme ou a troca de parceiros como forma de incluir mais gente no meio da dupla, de ventilar a relação. O discurso da variação, da eterna possibilidade de escolher novos amantes cumpre a mesma função que as antigas proibições e culpas: lembrar ao casal que numa cama sempre há mais que dois.