O tele-orfanato nosso de cada dia
Texto sobre telenovelas infantis e família contemporânea
Ser brasileiro, habitante da segunda metade do século XX implica em ter em sua memória, entreverado com as lembranças infantis, os hinos e músicas, brinquedos, roupas e tantas outras coisas, um certo acervo de lembranças ligadas a telenovelas, cada época teve um tipo de novela. As lembranças infantis são coalhadas de cenas pinçadas de novelas que os adultos em volta assistiam, incluindo o telespectador criança como participante, seja de roubadinha ou não.
Assistimos hoje ao fenômeno das telenovelas infantis, nada estranho…afinal, imersos neste tipo de ficção cresceram seus pais. Dediquemo-nos um pouco a pensar este produto cultural que vem a ser a telenovela e particularmente neste viés das populares séries dedicadas ao público criança. Aparentemente o mote para empreender tal reflexão do Brasil ser um bem sucedido exportador de novelas de televisão, com uma inédita eficácia de difusão, nada comum a nossas sempre discretas manifestações culturais. Ao psicanalista interessa outro motivo: o papel que estas arrastadas tramas ficcionais cumpriram nas histórias das gerações mais recentes de brasileiros.
Vejamos alguns elementos básicos da telenovela enquanto um tipo específico de exercício ficcional: a essência da cultura novelística reside no compartilhamento forçado de um determinado percurso ficcional em um ritmo uniforme. Torna-se possível partilhar opiniões e fatos sobre um conjunto de vidas alheias, com o detalhe de que ela é exibida em nossas casas e todos podem acessar na mesma hora, ordem e sucessão.
Para ampliar este território, tão mal visto pelas cabeças pensantes, visitemos, a fim de comparação, o país vizinho da literatura. Neste, há épocas de leituras epidêmicas: tivemos fases de Umberto Eco, em sua versão sacro-policial é claro, fases de Garcia Marques, de Jô Soares e Chico Buarque em suas incursões literárias, Tom Wolfe, Milan Kundera, Rubem Fonseca e de outras literaturas mais e menos gabaritadas. Muitas vezes coincidem com o verão, férias e tempo para ler e partilhar: “já chegastes naquela parte que…”, “mas aquela parte que ela…”, “e aquele diálogo? Fantástico, né?”. Alguns grupos menos afeitos a influências modísticas podem escolher algo mais clássico para partilhar, seja ele Thomas Mann, Marcel Proust, James Joyce ou Nelson Rodrigues, o efeito é o mesmo.
As leituras compartilhadas por grupos de amigos em férias são uma versão prolongada do prazer de comentar um bom filme. A mesa de bar ou de jantar se povoa dos personagens que agora pertencem a todos. Às vezes há problemas de sincronia: os que ainda não leram o livro, assim como os que ainda não viram o filme ficam com um sentimento de exclusão. A literatura de folhetim, hoje em desuso, solucionava este problema entregando os capítulos em pausas iguais, espaçadas o suficiente para nivelar o público.
A literatura tem no teatro e no cinema uma forma sintética, impactante e compartilhada de fazer viver a ficção: permeada pela presença vibrante dos atores ou pela agilidade das imagens, a história torna-se envolvente, conjuga-se em tempo presente, fazemos parte dela. O folhetim, ou seja, a ficção em pedaços que joga com a expectativa da continuidade, encontra seu primo imaginário nas radio novelas e telenovelas.
Em Face De outras formas de compartilhamento de um mesmo espaço ficcional como a literatura e o teatro, as novelas de televisão acrescentam os elementos da rotina e da massificação. Quanto à rotina, a telenovela realiza o milagre da completa sincronia, nesta ninguém fica de fora, se perder o capítulo, pode ler a síntese no jornal ou perguntar para alguém da família, do trabalho, o importante é que todos saibam.
Relativo à massificação, vamos salientar desta o aspecto do sentimento de pertença a partir do uso de insígnias comuns a um grupo. O fato de que vestimentas, objetos de decoração, músicas e hábitos de lazer dão literalmente forma à nossa vida, não constitui uma novidade absoluta. A massificação, tal como a costumamos compreender, adveio de duas condições atribuíveis a este objeto de vestir e usar: sua produção em série e condição de objeto de desejo.
A novidade da cultura de massas é que todos podem cobiçar e possuir objetos absolutamente idênticos uns aos outros. O sentimento de pertença social assim gerado é importante, pois atribui a um boné uma possibilidade de identidade. Eu, tu, nós, vós, eles usamos tênis Reebok. Se o meu é do Paraguai ou não são detalhes nos quais busca se preservar as diferenças de classe social, mas grosso modo, o dos camelôs é quase idêntico ao que foi comprado no comércio nova-iorquino.
A novela que a empregada doméstica, a professora, o médico, o cientista, a costureira, a dentista, o metalúrgico, a promotora e o ministro assistem pode muito bem ser a mesma, à mesma hora, seis dias por semana, compartilha-se as vidas dos mesmos personagens, trata-se de uma massificação ficcional, o objeto-fantasia torna-se radicalmente comum a todos, a comunhão é total na igreja universal do reino da ficção televisiva.
Nos anos 60 e 70, quando as utopias podiam ser usadas sem contra-inidicações era mais fácil. Bastava colocar-se na contramão e execrar estes produtos culturais que além de serem, e isto não mudou, pobres de espírito, induziam ideologicamente a população a uma concordância bovina. Distraiam o público com baboseiras melodramáticas enquanto a miséria e a injustiça se alastravam pelas ruas. Tudo isto é verdade, mas as conexões já não são tão óbvias como nos pareciam… Hoje, sequer temos direito aos delírios paranóicos embalados por George Orwell, no “1984”, ano que aliás passou sem muito ruído. Previa Orwell que o “grande irmão”, representado por uma onipresente tela de televisão, está a fabricar nossas mentes para tornar-nos cordatos, passivos e consumistas.
O grande ente que nos controla pela TV, diferente da fantasia de Orwell, materializa-se hoje na opinião pública. São pesquisas feitas sobre a audiência que decidem a vida, morte e escolhas dos personagens. Cada vez mais interativa, a TV, principalmente sob a forma da telenovela, oferece este elenco de personagens e histórias que permitem algum tipo de sincronia, de horário e de imaginário, aos corações solitários. Estamos sedentos de rotina e concórdia sob a forma amena da ficção.
Vivemos tempos de certo tipo de orfandade, não a da ausência dos pais reais, mas a de sua presença vazia. Apenas para ilustrar com uma boa imagem, recordo uma propaganda não comercial na TV a cabo: nela uma criança circulava entre uma floresta de pernas que, quando o menino as puxava, como fazem os pequenos quando querem que o adulto se abaixe para escutá-los, as roupas despencavam, vazias de seu conteúdo humano, a propaganda recomendava que as pessoas escutem e conversem com seus filhos…
Tempos onde todos querem fazer crer que escolhem sozinhos, que assinam o roteiro da própria vida, e isto redunda indiscutivelmente no esvaziamento do lugar dos pais, cujos corpos despencam vazios de conteúdo subjetivo. Não faltam pais de carne e osso, falta a crença de que a família possa de fato ser doadora de um padrão com o qual pautar a vida.
Os pais podem compartilhar experiências, na melhor das hipóteses, mas hoje como nunca estamos conscientes de que suas ajudas em geral não passam de boas intenções (das quais sabemos que o inferno está cheio). Não há mais profissão segura que um pai possa aconselhar, num mercado de trabalho mutante, os dilemas amorosos sofisticam-se, em tempos em que nenhuma convenção obriga um casal a conviver, os filhos, quem sabe como cria-los?
Aparente paradoxo, testemunhamos a existência de uma família extremamente grudenta, pois nunca os filhos permaneceram tanto tempo na casa dos pais. Barbados, passadinhas da idade cantada por Balzac, vão e voltam da casa paterna, sem destino nem origem minimamente equacionados. Porque então falar em orfandade?
Alcunhei esta expressão apenas para impressionar, criando uma contradição: como ser órfão de pais vivos? Como afirmar que as famílias de hoje, que tanto esperam de seus rebentos sejam vazias de rumos a oferecer? Mais que nunca, os filhos, hoje numericamente reduzidos, carregam sobre seus ombros as tarefas de realizar os sonhos dos pais: de ser o maior e o melhor. Espera-se ele que seja, no mínimo, um superdotado e de seu futuro, que seja algo simples como um presidente e assim por diante.
Não há mudanças desde que Freud escreveu em 1914, em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1) que as frustrações da vida dos pais são transferidas para a conta do filho. A menina a desempenhar o papel da Princesa, da Mulher Maravilha que a mãe não foi, o menino do SuperHomem, craque, ninja, magnata, devem arrancar da vida aquilo que esta ficou devendo a seus pais.Freud analisa o quanto este voto de gozo e potência dirigido aos filhos neutraliza nos pais a função e capacidades de por limites, afinal como dizer não a alguém tão grandioso?.
Porém, os frutos não caem tão longe da árvore quanto se desejaria, e com raras exceções os filhos não conseguem ir muito além do que novas equações com velhas cifras, ou o contrário. Já os filhos, por sua vez, não é estranho que se queixem do fato de que quem tanto deles espera, na verdade pouco oferece para garantir elevados vôos.
Assim, chegamos à disseminada fantasia que Freud pinçou e descreveu em um texto chamado “Romances familiares” (2): trata-se do jogo imaginário com a perda dos pais.
O romance familiar, descrito por Freud em 1908, constitui-se na fantasia de que a família verdadeira é outra, de preferência mais nobre, e associa-se à freqüente suposição de ser um filho adotivo. Freud elucida que “na verdade, todo esse esforço para substituir o pai verdadeiro por um que lhe é superior, nada mais é do que a expressão da saudade que a criança tem dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens e a mãe a mais linda e amável das mulheres.” e acrescenta que essa “fantasia é a expressão de um lamento pelos dias felizes que se foram”.
Temos assim que o tema da orfandade é caro a todos aqueles que gostariam de pais mais consistentes do que os pobres e frágeis seres humanos a quem coube o papel. Quiçá os pais da primeira infância, aqueles adultos gigantes que nos içavam em seus braços e falavam tudo aquilo que apenas tangencialmente compreendíamos, sejam ainda os mais parecidos com estes reis e rainhas que a fantasia conclama. Por isso a nota saudosista da elaboração freudiana, supõe que teria havido uma vez pais “suficientemente bons”.
Os pais contemporâneos, aqueles da propaganda que antes referi, são sabedores de que a tradição é algo que sustenta como na anedota do Barão de Munchausen, clássico mentiroso da ficção alemã. Pois este, em uma de suas inúmeras aventuras, estava a afogar-se lugar e conta que não afundou graças a que se içou-se puxando seu próprio cabelo…
A história, as certezas e sabedorias dos antepassados, se bem podem dar a ilusão de não cair, não sustentam mais do que o cabelo do citado barão, somos todos órfãos de algo mais consistente em que se dependurar. Sentindo-se assim como pais, atrapalha e assusta saber-se constituinte do passado do filho.
Mas exemplifiquemos, para melhor modalizar estes pontos de vista. Dediquemo-nos um pouco não só à telenovela, mas à fabricação do público desta desde as fraldas: falemos da “telenovela infantil”.
Acredito que analisando os produtos culturais dedicados à infância, capturamos nossa organização social em seus ideais. Para as crianças buscamos sintetizar o que cremos ter de melhor, ou talvez o que consideramos essencial. Assim, analisando a ficção que os adultos fabricam para educar e distrair aqueles que são sua promessa de futuro estaremos trabalhado com o que de melhor acreditamos ter para legar, ou seja, nossos ideais.
Há uma série de televisão em formato de novela que, entra ano sai ano, tem capturado soberanamente a atenção de boa parte das crianças do Cone Sul. Trata-se de “Chiquititas”, que retrata as desventuras de uma série de crianças residentes em um orfanato. Esta novela tem sido um popular porta-voz do renovado tema do esvaziamento do lugar parental.
Cabe de entrada a ressalva de que o tema da orfandade não é em absoluto novo na ficção, desde o mal amado inglesinho “David Copperfield”, criatura de Charles Dickens, talvez o mais popular órfão da literatura ocidental, e tantos outros que encheram páginas de lágrimas derramadas pela infância desamparada.
Iniciemos a análise deste produto televisivo naquilo que interessa a um psicanalista: nas articulações subjetivas que ele tece. Sendo assim, reportemo-nos a uma popular experiência da qual com certeza podem depor não poucos pais, habitantes de alguns países da América Latina, final dos anos 90. A experiência é a de ver suas criancinhas cantarem, com dedicado desempenho dramático, uma música da trilha sonora desta novela infantil na qual se diz o seguinte: “não me diga mentirinhas, dói demais, eu já sei que estou sozinha sem meus pais, eles foram pra bem longe, esqueceram que eu nasci, me deixaram, por aqui…” e assim segue. O fato inédito é o de que as crianças cantam esta, como o olhar enlevado pela veracidade da música, estando a poucos metros de seus dedicados e amorosos pais.
Esta canção, tematizando o inevitável desaparecimento dos pais torna-se, nos dias que correm, particularmente angustiante por mobilizar um elemento que já é parte intrínseca da função parental: a culpa. Em uma constelação familiar hoje banal, composta de uma mãe ausente de casa e de um ou ambos workaholliks, a culpa pela eventual falta que a infância dos filhos possa denunciar é moeda corrente.
Pais muito ocupados sentem-se em eterna dívida com seus filhos, cada momento passado juntos tem que ser fantástico, maníaco, para obscurecer os tantos outros momentos de ausência que martelam a consciência parental. Na verdade as ausências reais de que os pais tanto se culpam remetem a outra falta, esta incompensável, que é a da inconsistência que cada pai e cada mãe suspeitam existir no exercício da sua função. Não se trata de omissões reais, mas do compartilhamento de pais e filhos de um estarrecimento frente à fragilidade de certezas, crenças e realidades. As grandes guerras mostraram à próspera sociedade ocidental que o caos era possível, as utopias ruíram com todo sonho reparatório, como conviver com esperanças tão magras?
Sendo assim dá-se o que se pode, mas sente-se ser pouco. Promove-se uma presença ostensiva, os pais levam os filhos profundamente em conta na organização de seu tempo livre e o lugar ideal de férias familiares é a Disney…Como toda solução maníaca, a possibilidade de elaboração é zero, dos filhos nada se vê, nada se escuta, nada se diz, embora muito se faça juntos…
Seria de deduzir que a falta dos pais que esta canção evoca é a falta real de gente tão ocupada que pouco pode permanecer no lar para cuidar dos filhinhos. Porém, atentemos para um aparente paradoxo: os analistas em seus consultórios estão completamente habituados a escutar pacientes criados em famílias pré-modernas (do tipo mãe “do lar”, pai que chega da repartição à tardinha, mesa de refeições populosa e rotineira), queixarem-se de uma completa solidão, de uma falta absoluta de atenção por parte dos pais, da ausência de qualquer tipo de sintonia entre as gerações. Sabemos, portanto, que as famílias de pais ocupados não são necessariamente mais abandonadoras que as suas precursoras famílias de pais mais ociosos a quem jamais ocorreria que o tempo livre devesse ser dedicado às crianças. A culpa dos pais redunda em um ganho, se não qualitativo, pelo menos na quantidade de atenção que as famílias dedicam às suas crias.
A família moderna assume sua faceta “formativa”, em contraponto à ênfase “corretiva” da família tradicional. Explico: os pais hoje são conscientes do papel que cumprem na constituição da subjetividade dos filhos. São dedicados, exigentes e temerosos. Dedicados e exigentes, por que tem críticas aos próprios pais que invariavelmente julgaram ausentes, deprimidos ou rígidos, em suma, insuficientes para a tarefa, e esperam desempenhar um papel mais nobre junto a seus próprios filhos. Temerosos porque, assim fazendo, arvoram-se à investidura de um ideal que, como tal, sempre cobra seu preço. O ideal é como o espelho da madrasta da Branca de Neve, só que ele sempre diz “sim há alguém muito mais bonito que você”. Este investimento maciço em termos de culpa, dinheiro e dedicação cobra seu preço: exigem dos filhos a mesma superação em relação a si próprios. Pais e filhos submetem-se a mútuas idealizações.
Outrora um pai devia preocupar-se em afastar seu filho do mau caminho, confiante no poder formativo dos bons princípios, por isso o papel era mais enfaticamente corretivo. Já o princípio dos pais modernos é o da eterna insuficiência face a uma tarefa que sabem ser formativa. A figura parental é desinvestida de força na mesma proporção em que a filiação é questionada pelo ideal de libertação das origens, pois para ser algo tão diferente do de onde se saiu, é preciso recalcar esse ponto de partida. A dificuldade de compreensão da parentalidade moderna está na difícil articulação entre a falência dos ideais familiares e o aumento da idealização do futuro dos filhos e da excelência das funções parentais. Como poderia a tarefa parental estar tão desacreditada e tão investida ao mesmo tempo? Pois este é o fenômeno: pais inseguros, buscam oferecer todo tipo de oportunidade para seus filhos, abstendo-se de assumir suas escolhas, para não ser opressivos, corretivos ou limitantes como seus próprios pais, que em seu processo tanto criticaram.
A atualidade do tema da orfandade, que o tornaria de consumo fácil para as crianças, talvez responda à necessária produção de uma ausência de pais, cuja presença ostensiva em termos de exigência poderia ser atenuada devaneando sua falta. As famílias pouco podem oferecer em termos de tradição, normas e histórias. A presença passa a ser cada vez mais ostensiva quanto menos simbólica. A resposta à família grudenta, à “síndrome do ninho cheio”, é uma forma de parricídio. Matar os pais na fantasia, possibilita a constituição de um espaço onde a onipresença ansiosa destes dê lugar à constituição do que é próprio àquele jovem indivíduo que cresce.
Já Lacan elucidou que a agressividade constitui uma “tensão correlata à estrutura narcísica no devir do sujeito” (3), indicando o quanto somos feitos de amor e ódio, retirando da frustração, do desencontro entre os que se amam, o que inclui pais e filhos, a energia necessária para movimentar uma vida, o espaço para empreender a conquista de um ideal. A agressividade demarca o espaço limítrofe entre um e outro, é um seguro anti-fusão.
Se esta é uma versão contemporânea, na verdade o tema da orfandade é antigo como a família. A literatura clássica, principalmente a dirigida aos leitores mais jovens, tem nos órfãos seus personagens mais constantes, o que aliás parece meio óbvio, pois se o personagem precisa assumir sua própria voz e protagonizar a história, seus pais estão sobrando. Boa parte das histórias de fadas iniciam com algum tipo de orfandade, sugerindo aí o início de todas as desgraças, mas também aí o início da aventura, afinal, se a doce mãe de Branca de Neve não tivesse morrido não teríamos o resto da história!
Temos o anteriormente mencionado “David Copperfield”, órfão de pai, injustiçado por parentes maus e hipócritas, que o privavam de todos os seus direitos de herdeiro, abandonado por uma mãe frágil. Sua pobre mãe deixou-se manipular por um novo marido que cruelmente a separou de seu filho, fazendo-a sofrer até a morte.
Porém, o livro de Dickens não entra aqui na categoria apenas de clássico, mas na condição do mais famoso precursor da nossa novela, hoje televisiva, outrora radiofônica. Pedimos ajuda a este antepassado ilustre da malquista ficção em capítulos para as massas (seu “Pickwik” foi divulgado em capítulos e de surpreendente tiragem!), para que possamos elucidar os mecanismos de sua efetividade.
Constataremos aqui que não há divórcio entre tema e estilo. Os livros de Dickens produzem indignação frente à maldade de uns, euforia frente à excelente condição humana de outros. São aspectos fundamentais do melodrama e as “Chiquititas”, novela infantil, navega com seus órfãos por todos os elementos do bom e velho melodrama. Este estilo ficcional tem o tranqüilizador hábito de não confundir o bem e o mal, vítimas e algozes, de modo a que as pobres almas desorientadas saibam o lugar das coisas. Assim, sem poder contar com a orientação dos pais, livres destes e de sua idealização opressiva, os pequenos heróis infantis sintetizam um lugar ficcional bastante útil ao unir esta solidão dos filhos aos sólidos elementos ético-educacionais do melodrama.
A mensagem é: crianças, vocês estão sós, há bons adultos atenciosos que os cuidam, assim como há os maus, mas não se preocupem, o caminho certo e errado estão bem assinalados, basta seguir as placas. O problema é que quando se começa a caminhada as placas são todas de “compre”, “use”, “vista”, “coma”, “fume”, “cheire”, etc., quem poderá oferecer uma bússola?
O ambiente organizado, as regras e uniformes das “Chiquititas” buscam emprestar alguma certeza sobre os bons e maus caminhos. Há um ar de internato inglês, que em absolutamente nada lembra o espaço que encontra uma criança de rua institucionalizada no Brasil. Sociologicamente absurdo, semelhante cenário tem outra finalidade: ambienta os personagens na nata da tradição educacional ocidental. O teleorfanato traz os ares do mais tradicional modelo educacional a conformar, com seus uniformes, regras e ambiente asseado, pelos menos imaginariamente, nossa expectativa de que haja algum lugar seguro.
A novela para crianças cumpriria a função suplementar de dar certeza de que a rotina e a massificação ficcional de que os adultos se beneficiam seriam estendidas às crianças. Trata-se de iniciá-las desde muito jovens no hábito da telenovela, não mais algo que elas assistem de roubadinha com os adultos, coalhado de cenas impróprias e tramas complexas demais, introduzindo algo próprio para menores, com o aspecto encomendado pelos adultos-pais de plantão.
Não só esperamos que a TV não deforme, quando atribuímos a violência das crianças aos seriados e desenhos infantis que espalham socos e sangue, esperamos também que ela forme.Temos mais facilidade de reconhecer em nossos rebentos traços da mídia do que aqueles legados pela vida familiar.Uma criança americana que sai matando pessoas é facilmente atribuível à violência da produção ficcional, tanto quanto é difícil admitir que o sanguinário proprietário da arma que usou na verdade não era o “Street Fighter” virtual, mas seu real e nada virtual pai…Por isso, introduzimos cedo na vida das crianças a telenovela. Esperando que o melodrama tenha a mesma força que atribuímos à violência na mídia. Desta forma, o amor e a justiça, tão claros nesta ficção simplória, garantiriam adultos de boa cepa.
E aqui vai a última consideração: as Chiquititas fazem um equívoco que é útil para pensar. Entre orfandade e abandono. Se a orfandade era um fato em tempos passados mais forte do que é hoje, pois a mortalidade nos partos era assustadoramente maior e a expectativa de vida muito menor, o abandono é hoje um fenômeno socialmente tão importante quanto a orfandade o foi.
Crianças de rua, como as que esta novela quer retratar, na vida real tem pais, muitas vezes são alcoólatras, são famílias inexistentes, mas elas não são órfãs, são abandonadas. O abandono é ser órfão de pais vivos. Nesta novela encontramos as figuras fantasmagóricas dos pais destas crianças que se escondem, há pais que não sabem quem são seus filhos, filhos que não sabem quem são seus pais, pais que se equivocam em relação a qual é seu filho… A tônica é o desencontro, é um jogo de esconde-esconde. A figura da adoção percorre os capítulos, famílias são formadas em idílicos casos de escolha mútua entre pais e filhos. Assim, na ficção, famílias podem se formar sobre um fundo de carência de pais, descoladas de qualquer genealogia.
Na verdade, mais nos parecemos com essas famílias adotivas. Afinal, pais que querem realizar sua tarefa divorciados de sua própria tradição, são como as famílias constituídas pelos órfãos e seus pais adotivos da ficção televisiva. Faz de conta que podemos começar tudo de novo, conforme os nossos ideais e longe das dubiedades do amor filial que bem conhecemos.
Sabemos, por conhecimento pessoal e intransferível, que a família nuclear moderna é fundada pela ambivalência e pelo lusco-fusco das posições paterna e materna, que tanto deixam a desejar quanto foi-nos necessário para crescer. Fantasiamos porém uma família perfeita: sem história nem dúvida. Esperamos da ficção que o bem, o mal, a justiça e a felicidade existam enquanto algumas das certezas que perdemos ao longo do trajeto da história. Enfim, não há placas, mas sempre podemos tentar instalar uma televisão em cada esquina…
(1) Freud, Sigmund, Sobre o narcisismo: uma introdução, Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1980.
(2) Freud, Sigmund, Romances familiares, Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1980.
(3) Lacan, Jacques, A agressividade em psicanálise, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
Texto lindo, cheio de verdade. Fiquei muito contente com a professora que solicitou a resenha dele, apesar de ter sido bastante difícil resenhar em cima de tanta riqueza.