Olhos grandes
Sobre o filme Cria Cuervos de Carlos Saura
Passaram-se 30 anos desde nosso primeiro encontro. Foi numa sala de cinema, e desde então eu soube que ela era minha melhor tradução. Quando me chegou a informação de que poderia vê-la novamente, confesso que vacilei. Na hora do encontro um friozinho na barriga denunciava o temor de reviver a emoção que ela me causara. Mas já no primeiro impacto de seus grandes olhos negros, nos quais novamente me perdi, soube que o efeito havia se renovado. Cria Cuervos, o filme de 1976 do diretor espanhol Carlos Saura, finalmente disponível em DVD, ainda continha a essência da minha infância.
A menina Ana é uma órfã recente, assistiu à agonia da mãe, de quem era a mais próxima das três meninas, assim como às crises do casamento infeliz de seus pais. Ela é uma daquelas crianças que vagam como fantasminhas pela casa, que dormem com dificuldade, inseguras por si e pelos outros. São crianças vigilantes que precisam observar tudo para tentar controlar, ou no mínimo compreender, alguma coisa.
O raciocínio dos pequenos é rudimentar, por isso, os consideramos inocentes, visto que muitas vezes eles tomam brincadeiras e expressões ao pé da letra. Numa cena do filme, quando a mãe lhe pede para jogar fora um pote de bicarbonato, a menina pergunta se aquilo é um é veneno. Com um sorriso nos lábios, a mãe responde que sim, poderosíssimo. Ana o guarda, ele é seu segredo. Em uma briga dos pais, ela escuta que a mãe reclama do marido adúltero dizendo “vais me matar”. A morte que lhe arrebata a criatura mais amada do mundo chega logo para confirmar aquilo que era uma figura retórica.
No pensamento de uma criança as conexões se fazem de forma bem direta: Ana julga seu pai culpado pela morte da mãe e acredita tê-la vingado, quando ele morre de um ataque cardíaco, casualmente no dia em que a filha havia misturado seu “veneno” no leite dele. Administrará também seus votos de morte sobre todos aqueles que tentarem interferir entre ela e as memórias da doçura da mãe, que eram seu único consolo. A morte já havia lhe pregado a pior peça, agora ela é que devia obedecer à sua vontade.
Também tive nas mortes precoces do meu pai e avô um enigma a decifrar com urgência, antes que ele me devorasse. Como Ana, também perambulei por corredores escuros tentando entender os mistérios do sexo e da morte, insone, desenvolvendo raciocínios estranhos para melhor me orientar, como os silvos dos morcegos para se movimentar no escuro. A famosa declaração em off da personagem já crescida, que diz não crer no paraíso da infância, ilustra o duro trabalho dos infantes de escutar além do dito e enxergar atrás do visível.
Cria cuervos, y te comerán los ojos, diz o ditado. Todas as crianças são também esses seres agourentos, assustadiços, que investigam os segredos dos seus adultos, compensando sua fragilidade com curiosidade e fantasias. Ana inverte a pergunta de Chapeuzinho ao lobo; “para que esses olhos tão grandes?”. “Para te comer melhor”, dirão as criancinhas, “para te compreender melhor”…