Os Duelistas do Yu-Gi-Oh!
Sobre o jogo e desenho infantil 10/12/2003
Crianças brincam de fazer ativamente aquilo que sofrem passivamente, seja bom ou ruim. Visto isso, cabe a pergunta do que se encena quando travam batalhas, à moda das rinhas de galo, com criaturas virtuais provenientes de um baralho animado. Em vez de valetes e damas, as cartas são de dragões, feiticeiros, guerreiros, bestas, demônios, fadas e muito mais, num total de mais de mil variantes. Estamos falando do Yu-Gi-Oh!, jogo e desenho animado japonês, no qual crianças se enfrentam em duelos e competições através da mestria em colocar a criatura adequada na hora certa. Antes deste, os desenhos animados Pokemon e Digimon, já desenvolveram trama parecida, porém os monstrinhos que duelam são de estimação. São lutas por prestígio, tal como as que se travam em qualquer local de trabalho ou estudo. No Yu-Gi-Oh, medem seus poderes em pontos e capacidades da criatura, decidem numa arena de quem é a vitória e o perdedor vai para o cemitério. O criador do jogo, Kasuki Takashi, desenvolveu este híbrido entre a impessoalidade do videogame e o socializante jogo de mesa, por considerar “muito mais emocionante lutar contra um humano enquanto estás olhando nos seus olhos, do que contra uma máquina”. Já que temos que duelar, que seja corpo a corpo.
O Japão presta-se para representar uma versão superlativa da mesma sociedade capitalista em que vivemos. Lá cada filho é um investimento e, como eles não brincam em serviço, trabalham muito para garantir o sucesso do negócio, resultando nas conhecidas histórias trágicas de suicídio por fracasso escolar. Somos sociedades diferentes, mas se as nossas crianças e as deles brincam da mesma coisa, estão situando semelhanças importantes. Ambos se sentem como monstrinhos de duelo manipulados e colocados na arena. É curioso que num tempo em que se julga que as crianças são dominantes, mimadas e sem limites, elas brinquem com criaturas tão passivas, cujos poderes não as libertam da função de marionetes. Provavelmente é porque todo este investimento “amoroso” contém uma forma cruel e subliminar de dominação. Eles não são bobos, sabem que estão na arena para ganhar, afinal a aposta é alta. No jogo da vida, as criaturas são as crianças e os duelistas seus pais, o mundo se chama arena e o lugar dos fracassados é o cemitério, embora alguns tenham encontrado formas zumbis de viver, graças a drogas ou outras formas de vida fútil.
Por outro lado agrada-me a beleza assustadora destes monstros de papel. Observe as cartas, elas evocam toda a riqueza do nosso acervo inconsciente e cultural de terror. É um alívio supor que os filhos do capitalismo não viraram robôs, podem estar presos a um baralho de cartas, mas eles têm poderes ocultos. O pequeno jogador age como o adulto, mas seu coração está na carta que o representa. Através do seu monstro, forças provenientes do acervo imaginário da sua espécie humana, evocam algum potencial de transcender a pequena arena da vida estreita a que estamos condenados.