Os gritões da caixa de areia

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade.

Minha avó húngara costumava observar que aquele que grita é o que suspeita não ter razão. Ela me dizia isso para que eu evitasse a deselegância absoluta de argumentar na base do volume da voz. A fala mansa, o raciocínio ponderado e o argumento pensado, eram, para ela, expressão de inteligência. Tinha horror de gente alterada.

Ela estava em posição adequada para falar de exageros, de discursos fanfarrões, pois viu a ascensão do nazismo acontecer e, estarrecida, constatou a massiva adesão popular às bravatas de indignação mais caricaturais. Os oradores performáticos e exaltados eram os “cidadãos de bem”, pedindo a eliminação dos culpados por macular a sociedade ideal que eles presidiriam. Por azar, ela pertencia à categoria dos ratos a serem exterminados. Sobreviveu reclusa num porão durante toda a Segunda Guerra, na qual perdeu sua família, exterminada em Auschwitz. Lá fora, os nazistas e seus asseclas vociferavam o quanto precisavam vingar sua pátria reduzida ao descrédito. Em vez de tentar uma saída econômica e diplomática, a indignação do povo alemão encontrou um judas para malhar e na guerra seu caminho. Não estamos, creio e espero, à beira do fascismo da mesma maneira, embora tapados de ódios e indignações.

A altura da voz e os atos de violenta intolerância são um mecanismo rudimentar, utilizado por povos e indivíduos quando enfrentam crises de identidade. As crianças bem pequenas, por exemplo, podem puxar o cabelo de outro bebê e chorar como se eles mesmos tivessem sofrido a agressão. Isso não é artimanha, é confusão de limites. Quando estas bordas, no sentido de onde termino eu e começa o outro, ficam tênues, é que as mordidas na caixa de areia começam. A maior parte da violência provém desse tipo de disputa territorial que está nos primórdios da identidade, essa frágil autoimagem que congrega o pouco que sabemos de nós mesmos.

Nas crises econômicas as tempestades raramente abalam os muito ricos, mas a classe média vive suas benesses como um barquinho pequeno e inseguro. Seu poder aquisitivo oscila e, decorrente disso, seu status social é mais frágil. Quando naufragam os privilégios daqueles que não os têm garantidos, os gestos de desespero são esperáveis. Nestes casos, é o prestígio e, portanto, um dos fundamentos da identidade, que ameaça se afogar. Ninguém quer parecer-se com os pobres, cuja miséria emoldurava a riqueza alheia.

Neste momento de crise, os limites que separam indigentes de pobres, e remediados de médios ficaram mais tênues. É hora, portanto, de gritar, morder o coleguinha e perder a elegância. Afinal, se não sabemos mais o que somos e, principalmente, quanto valemos, alguém deve ser responsabilizado, aos gritos, por isso. Cortem-lhe a cabeça!

2 Comentários
  1. Beatriz Diamante permalink

    Diana !

    Simplesmente maravilhoso, oportuno, digno, elegante e clarificador da imagem das ruas e nas ruas.As estrias do nosso tecido conjuntivo ficaram mais aparentes.

  2. Excelente, parabéns!
    Estou divulgando seu artigo.
    🙂

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