Os homens que amam seus cachorros

Pequenos amores em grandes momentos não são irrelevantes…

Na época do impeachment do presidente Collor, os jornais estavam tomados pela indignação e pelo entusiasmo frente à movimentação popular. Também estava empolgada com o assunto quando fui, como de hábito, ler a coluna do Carlos Heitor Cony na Folha. Bem no meio da erupção social, no final daquela página, ele escrevia sobre suas cadelas setters que, se recordo bem, eram duas e dizia algo relativo à sua pelagem avermelhada. O que nunca esqueci foi da sensação boa que deu o encontro com aquelas divagações tão fora de propósito.

Podem chamar, a mim e ao Cony, de alienados, pelo menos estou neste caso em ótima companhia. Aquilo parecia ser uma nota de rodapé lembrando o que parecia não caber no contexto daquele momento. Longe dos cenários e comoções sociais, reduzimo-nos aos amores, aos afetos mais prosaicos, cuja simplicidade a relação com os animais domésticos simboliza muito bem.

Voltei a evocar essa história ao ler o cativante O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura (Boitempo). É uma narrativa tripla que tem seu ponto de confluência no assassinato do líder soviético Leon Trotsky, cujos anos de desterro acompanhamos no livro. Como pano de fundo, temos a instalação do terror, que levou o sonho socialista à categoria de pesadelo, conforme Trotsky insistentemente denunciava. Ao ser expulso com sua família, o antigo chefe do Exército Vermelho conseguiu levar consigo sua cadela Maya. Aí temos o primeiro cão.

Num segundo eixo narrativo conhecemos o comunista espanhol Ramón Mercader, conhecido como aquele que matou Trotsky com uma picareta. Por último, temos o terceiro personagem central, que é Iván, um escritor desiludido que sobrevivia como veterinário prático, a quem o carrasco espanhol encontrou numa praia cubana. A empatia entre esses dois instala-se partir do interesse de Iván pelos cachorros de Mercader, um casal de borzóis, impetuosos animais russos da mesma raça de Maya. Aliás, teria sido o interesse pelos cachorros uma das formas do assassino aproximar-se do arredio Trotsky. Novamente os cachorros.

Para surpresa de Iván, aquele homem de aspecto doentio, que como ele amava os cachorros, tinha uma história inacreditável de crime, intrigas e clandestinidade para contar. O cubano, por sua vez, vive o ostracismo insular em companhia de sua mulher doente e do fiel cão Truco.

São histórias de sacrifício, idealismo, fanatismo, lucidez e desencanto nas quais os cachorros eram as derradeiras testemunhas silenciosas daqueles que pareciam ter esquecido de quem eram como indivíduos. As grandes paixões sociais movem moinhos, mas não suprem a relevância dos vínculos. Como naquela crônica do Cony, no pé da página da nossa vida resta-nos o que conseguimos amar, nem que sejam apenas os cachorros.

2 Comentários
  1. Neivo Zago permalink

    Gostei muito do texto. Há bastante intertextualidade.

  2. Beatriz Diamante permalink

    Ontem ( dia 20 ), nosso querido Cony continuou na mesma linha.

    Texto sensível, singelo e prosaico , e absolutamente humano da nossa frágil existência. .

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