Os mistérios do mar
Relação com o mar como metáfora de modo de vida
Nasci na beira do mar. Não do tipo cálido, com águas amigáveis, quentes e transparentes. Mas de caráter revolto, gelado, cheio de opinião e mães d’água: o mar do Uruguai. Lembro dos invernos em que ele desbordava a praia, engolia calçadas, do frio salobro, das histórias de turistas afogados, que os nativos da praia adoravam contar. Por isso, ao contrário de uma familiaridade inata, desenvolvi com ele uma relação de cautela, um respeito distante, marcado pelo temor e a admiração. Eu e o mar nunca fomos íntimos.Por isso mesmo me surpreendem aqueles que não podem ver uma onda que já vão arrancando a roupa, afiando os caniços ou mesmo os surfistas, que o encaram como um lugar para brincar. Esses que enfrentam ondas gigantes, não sei se são loucos, temerários ou simplesmente conhecem o mar com uma familiaridade que me escapa. Quando chego a uma praia, sinto urgência de ir para a beira vê-lo imediatamente, principalmente ouvi-lo e cheirá-lo, mas prefiro o paradeiro seguro da areia ou das pedras. Só entro na água nos dias em que ele está tímido, calmo, previsível.
Por vezes temo que isso seja metafórico da minha vida, talvez esteja gastando minha existência contemplando-a desde a beira. Por exemplo, encaro a morte da mesma forma cautelosa que dedico ao mar: acho que acredito mais nela do que a maior parte das pessoas. Pode ser, mas fico tentada a valorizar minha atitude, de fascinação sestrosa frente à imensidão do mar e ao poder da morte. Quanto ao amor, reservo-lhe os mesmos cuidados: fico sempre meio incrédula, atenta às correntes frias e traiçoeiras, aos bancos de areia que surgem e desaparecem deixando-nos sem chão. Pessimismo? Fobia? Por que não pensar essa postura como um fascínio que preserva o mistério da vida que nem sempre se presta para se refestelar confiante em suas águas?
Claro que é bom divertir-se, sentir-se cômodo, afastar-se da inquietude, enterrar o guarda sol na areia como se tivéssemos a escritura daquele lugar. Mas somente uma atitude observadora e respeitosa pode perceber as mudanças de humor do mar, saboreando-lhe as diversas faces, conhecer-lhe os detalhes para usufruir sutilmente das belezas. Com a felicidade é bem assim: nem sempre estaremos dominando uma onda, boiando mornamente entre peixinhos coloridos. A maior parte dos bons momentos é sutil como cheiro de maresia, gritos de gaivota, brisa no rosto. Reconhecer os mistérios da vida habilita-nos a perceber aquela felicidade delicada, que em geral nos passa despercebida.