Os mortos também amam
Sobre o filme Noiva Cadáver, de Tim Burton
No recente finados não fui ao cemitério, fui ao cinema. Depois me dei conta que não foi exatamente uma heresia para com os mortos, e sim uma homenagem. Assisti Noiva Cadáver, um conto de fadas em animação (stop-motion), do sombrio Tim Burton. No enredo, um rapaz enfermiço tem seu amor disputado entre duas moças, sendo que uma delas, morta e em decomposição, é paradoxalmente mais charmosa e sedutora do que a viva. Não bastasse, o mundo dos vivos é cinzento, melancólico e mecânico. Já a subterrânea terra dos mortos é uma festa: musical, alegre, repleta de simpáticos personagens bizarros, como costuma ser a comemoração do dia dos mortos no México.
Victor é filho de um próspero casal burguês sem nobreza, que lhe arranjou um casamento com Victoria, uma moça de família nobre e falida. Na véspera da boda, os jovens ainda não se conhecem, mas num furtivo encontro descobrem que são sensíveis, amantes da arte, avessos às rígidas convenções de seus pais. Porém, como nos contos de fadas, até o final feliz ainda terão que fazer uma jornada de crescimento. Neste caso é um caminho de ruptura com os deveres sociais e de luta por seu amor, e o outro reino, cenário desse embate, é o mundo dos mortos. Num equívoco Victor termina comprometido com uma morta: Emily, a noiva-cadáver. Ela havia ido para o túmulo em trajes de casamento, assassinada por um falso noivo, que lhe roubou a vida e as jóias. Victor precisava livrar-se dos grilhões familiares para amar, a noiva zumbi, por sua vez, precisava um dia ser amada, para deixar de arrastar aqueles trajes inúteis pela eternidade afora. Eles conseguiram, graças à mágica interação entre os mortos e os vivos. Supõe-se que as visitas dos mortos trazem tragédia ou tristeza, mas parece que por seus caminhos também podem passar o crescimento e a elaboração de conflitos psíquicos. No mundo de Burton, são os vivos que parecem almas penadas, mal-gastando sua temporada sobre a terra. Para Victor, a noiva-cadáver representa o casamento morto que seus pais e sogros haviam arranjado para ele, um casamento sem amor como os deles.
Quanto ao mundo dos mortos, sabemos que ele nos aguarda, tomara que por bastante tempo. Transcendências à parte, se há uma morada certa para os que se foram (as outras são presumidas) ela é cá entre nós, que aqui os lembramos. Há vários tipos de mortos: pessoas amadas, ancestrais interessantes ou mesmo fracassados. Mas a morte, neste caso, representa acima de tudo uma relação com o passado, quer seja alusivo aos mortos ou o até aos vivos que nos impingem seus desejos: nossos pais. A família está sempre presente, mas, para conseguir ter alguma vida própria, torna-se necessário matar simbolicamente algumas de suas influências, diferenciar-se. Tristes e cinzentos são aqueles que ignoram sua condição de marionetes de sua própria história, pois somente conhecendo-a poderão cortar seus fios. Noiva-Cadáver é lindo, porque nos lembra que a vida é curta, sobre-determinada, marcada pelo passado, mas é nossa.