Os ovos
Sobre a arte de envelhecer, em 15/04/2006
Quando a conheci ela tinha 77 anos e problemas de 47, já vão uns dez anos. Dilemas de amor e conflitos com a mãe envelhecida. Vou chamá-la de dona Irma. Semana passada encontrei sua neta e soube que continua lúcida, curiosa, conectada. Senti saudades, foi minha paciente, mas me ensinou muita coisa.
Certo evento da sua vida, entre o cômico e o trágico, transformou-se para nós duas em ensinamento: dona Irma resolveu fazer um doce, daqueles que levam dúzias de ovos. Foi ao armazém comprá-los e na volta levou um tombo daqueles. O que causou graça foi o fato de que, embora ela tenha ficado toda lanhada, nada quebrou, os ovos ficaram intactos. Resmunguei que isso fora uma temeridade, que ela deveria ter cuidado seu corpo, e não com os ovos, mais fáceis de substituir. Inútil, dona Irma tinha outras prioridades.
Ao contrário do que se diz, vão-se os anéis, ficam os dedos, neste caso foi-se o corpo, ficaram os ovos. Esses ovos representavam algo que ela queria muito fazer, tanto que se esquecera do corpo. Sei que para uma pessoa idosa cair é muito arriscado, algumas coisas quebram e não colam. Na velhice, quando o corpo se torna nosso inimigo, fica difícil manter o pique. Dona Irma conseguiu, porque a prioridade eram os ovos.
Esses moços, que passam na academia horas e dias a fio, esquecidos dos ovos, vivem como velhos, reduzidos aos cuidados com a saúde, no culto de um corpo inutilmente forte. Correm na esteira, sem ir a lugar algum, fazem uma força danada, que não constrói nem transporta nada. Pobres moços, ah se soubessem o que dona Irma sabe, não malhariam tanto e fariam mais doces que levam dúzias de ovos.
Os bebês muito pequenos não compreendem os limites entre seu corpo e o mundo externo: quando assolados por uma dor reagem com a fúria de um país em guerra. Já os velhos, assombrados pelas crescentes limitações, vêem suas possibilidades de circulação reduzidas a cada ano. Observamos então, que libertar-se das exigencias do corpo é uma das benesses da juventude, período que dura pouco, aliás. Por que então passar esses poucos anos, os únicos de liberdade, dedicados à tirania da carne?
Dizem que depois de certa idade, de uns quarenta em diante, quando acordamos e não sentimos nada doendo é bom conferir o obituário do jornal: pode ser que estejamos mortos. Resta-nos a lição de dona Irma: preocupem-se com os ovos. A força de viver reside na vontade de desejar coisas para além de nós.