Os que vão morrer

Sobre a morte nos hospitais, crônica não publicada

Amanhã, faz exatos vinte anos que se encerrava outra agonia, nem tão global quanto a do papa, mas que foi importante para os brasileiros: a do primeiro presidente pós ditadura, Tancredo Neves, cuja doença acompanhávamos apreensivos pelo destino da nossa renascente democracia. O espetáculo público do fim da vida destes homens ilustres, entre tantos outros que tiveram direito a cortejos monumentais, faz parecer que temos lugar para a morte em nossa sociedade. Suportamos e até glorificamos a exposição de seus corpos, mas essas homenagens não implicam em que estejamos habilitados para um trato social com o ato de morrer, cujo acontecimento ainda é para nós um tabu.

É esse o problema que se revela através da  recente polêmica a respeito da racionalização do uso das UTIs, restringindo-as a pacientes que se beneficiam de seus cuidados intensivos. Essa nova prática, acabaria deixando aqueles que infelizmente precisam morrer livres desse ambiente gelado, barulhento, isento de intimidade e distante das pessoas queridas. O problema é que, em geral, essas mesmas pessoas queridas sentem-se frágeis para suportar a dor e a impotência de assistir a uma morte para a qual ainda, ou talvez nunca, estão ou estarão resignados. A UTI acaba funcionando como uma barreira de proteção, onde aqueles que morrem ficam junto dos que estão profissionalmente preparados para isso. De um lado os moribundos e seus doutores, de outro os mortais despreparados para o absurdo da morte. A história da moça americana, cujo corpo morto-vivo passou 15 anos à mercê do fanatismo possessivo de seus pais é um exemplo do quanto se pode ser egoísta com os que estão no fim. Quantas vezes ainda será preciso prolongar a vida de pessoas cansadas de tanto sofrer, que em várias ocasiões tiveram inclusive até oportunidade de despedir-se dos seus, por puro exercício da nossa incapacidade de suportar a morte?

Evidente que preferiria que o motivo da atitude do ministério da saúde não fosse decorrente da necessária administração de um sistema de saúde deficiente e desumano. Racionalizar não deve equivaler a baratear o trato com a doença a qualquer custo. Há muito a ser racionalizado antes da saúde, mas talvez essa situação terminará oportunizando um favor aos que morrem, pois obrigará a que tenhamos que enfrentar o trato com o processo de morrer de uma forma menos hipócrita. É preciso dizer com todas as letras, que esse setor do hospital é inúmeras vezes utilizado para administrar a separação entre os vivos e os que estão morrendo, não para salvar vidas.

Do dia para a noite não aprenderemos a suportar o insuportável. Por isso gostaria de sugerir que essas medidas fossem acompanhadas de cuidados e atenção com quem está sofrendo tanto. É preciso que seja pensada também uma estrutura para os pacientes terminais e seus familiares, que inclua analgesia para o doente, assistência psicológica e religiosa para os que ficam. Se a racionalização do uso das UTIs significar o abandono daqueles que estão desenganados pela medicina, aí sim será um ato de crueldade. As instituições de saúde servem para melhorar a qualidade da vida e isso, por mais paradoxal que pareça significa melhorar a qualidade da morte.

07/01/06 |
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