Os sem chinelos
A fadiga é democrática e universal.
O marido chega em casa exausto. Os chinelos o esperam em frente ao sofá. Sua esposa trabalhou o dia todo para que esse momento fosse perfeito: o toque de recolher silencia as crianças, a comida pronta e fumegante chegará à mesa com precisão suíça. A conversa será amena, preocupações devem aguardar o momento certo para não exasperá-lo com miudezas domésticas. Ela se desespera quando precisa comunicar-lhe problemas, confusões do filho na escola, um conserto que vai custar caro. Sua função é zelar pelo seu repouso.
Mas e ela, a esposa e mãe, que também trabalhou o dia todo equilibrando pratos no ar para que a família e o orçamento funcionassem, quando é que descansava? Donas de casa podiam até ter algum tempo ocioso, mas não era considerado de descanso, porque a ninguém ocorria que elas estivessem cansadas, afinal, “não trabalhavam”.
Faz décadas que essa cena familiar desapareceu da maioria das casas, o feminismo e a democracia familiar derrubaram o senhor e seu castelo. Hoje os chinelos não esperam por nenhum de nós. À noite não ocorre a pais e mães calar seus filhos, pois costuma ser a hora em que se conversa e brinca, num encontro marcado pela saudade e denso de culpa. No lugar do pai reverenciado e da mãe gueixa, a avalanche de tarefas e preocupações, cada dia mais equânimes para ambos. As questões domésticas espreitam o dia todo a volta do casal exausto e caem sobre eles no momento em que abrem a porta.
Sempre alertas, vivemos como as antigas donas de casa: nunca descansamos. As diversas formas de comunicação virtual eliminaram as barreiras entre dentro e fora de casa, dificultam a intimidade e ajudam a instaurar o dia sem fim. Não há refúgio, toca, retiro.
Para nossos avôs patriarcas, o direito ao repouso era consequência da satisfação do dever cumprido. A submissão dos outros membros da família que transmitiam tal seriedade ao seu bem estar era como uma condecoração diária, um reconhecimento silencioso dos seus méritos. Ao chegar em casa era recebido como herói, presidente, general, mesmo que no trabalho nunca tivesse passado de peão.
Hoje ficamos dia e noite tentando acertar, numa jornada acompanhada de cruéis autocríticas, saudosos de parâmetros. Mas não nos cabem saudosismos daquelas famílias rígidas e injustas. Sobre o descanso que garantíamos aos patriarcas repousavam nossas certezas, ao preço da vida sem trégua das mulheres, que hoje é a de todos nós. Foi só o (péssimo) costume que nos ensinou a confundir hierarquias rígidas, valores religiosos repressores e preconceitos com algum tipo de paz interior. Nosso castelo não será mais em terra firme, assentado sobre essas pedras fundamentais. Agora teremos que aprender a amarrar as redes e calçar os chinelos em nossas ilhas flutuantes de incerteza. Que podem ser lindas.
Resguardadas as comparações e diferenças não há como desconsiderar alguns procedimentos que eram usados pelas famílias no passado. Particularmente tenho boas recordações dos meus tempos de infância quando ainda compartilhávamos valores e virtudes que hoje já não se cultivam mais. É um muito bom texto que nos faz refletir sobre a função de cada membro familiar na atualidade.
Oi Diana,
Gostei muito do seu texto!
Acompanho seus escritos pela revista Vida Simples, e por aqui também.
Sou psicóloga e participo de um Cartel na EBP da minha cidade, Vitória ES.
Amo ler e escrever, e recentemente criei coragem e um Blog pra expor essa escrita que tenho produzido.
Que desafio! Não é só prazer… Como é difícil soltar a palavra. Não ter controle sobre o que o outro vai ler, o que vai fazer com isso: um elogio, uma crítica!
Acostuma-se com isso?!
Enfim, gostaria de deixar um abraço e um parabéns pelas suas palavras. Pois elas me inspiram a escrever e a continuar a escrever… Obrigada!
Denise.
querida denise: com a inseguirança a gente se acostuma, não tem outro jeito, ela não nos abandona nunca… mas com os leitores há algo engracado, pois é difícil imaginá-los no abstrato, na internet, no jornal, na revista. quando alquém se comunica, como o fazes aqui, é uma ilha de presenca num oceano de solidão. gracias! Abraços e bons escritos!
Diana