Os vivos e os mortos
Sobre o livro A Solidão dos Moribundos de Norbert Elias
31 de outubro é Halloween, 2 de novembro é Finados, dias de encontro com a morte. Os espíritos nos assombram o ano todo, mas nestas datas saberíamos o que fazer com eles, podemos lhes prestar algum tipo de homenagem, seja uma festa, uma visita ou uma lembrança.
“A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”, escreveu Norbert Elias, num ensaio intitulado “A Solidão dos Moribundos” (Jorge Zahar Editor). Ele explica os motivos que propiciam um distanciamento da morte. Vivemos mais tempo, os remédios e a prevenção prometem um adiamento, oferecem drágeas de imortalidade . Habitamos espaços menos coletivos e com separação de gerações, os jovens e as crianças não moram com os velhos, os doentes são hospitalizados. Saúde e segurança são a base do almejado bem estar. Houve tempos em que estávamos mais providos de rituais mágicos ou religiosos para intermediar a litigiosa relação com a morte Hoje só temos a negação como arma e ela é um recurso frágil.
O problema não é morrer, o problema é viver sabendo disso. Por isso tentamos manter as crianças ignorantes da morte, acalentamos a fantasia de que uma vida assim tão fresca possa se sentir infinita. Mas as crianças sabem da morte, são os adultos que não querem falar com elas sobre isso. A morte de uma criança ou um jovem é absurda, é o assassinato do pouco de eternidade que eles representam para nós. Nossa sociedade não enfrenta apenas o problema da morte no leito, da doença ou da velhice, temos a morte violenta que não abandona o mundo ocidental, embora mude de máscara. Elias citou as guerras mundiais e o holocausto como prova da “fragilidade da consciência que proíbe matar”, infelizmente temos a acrescentar o terrorismo e a violência urbana. Nas palavras de um terrorista checheno – “buscamos a morte mais do que vocês buscam a vida” – está sintetizado o conflito que alenta tantos assassinatos . Criamos um mundo de plástico, sem cheiros, rugas ou dores, mas seu preço é a exclusão de diferenças e imperfeições, em suma, a intolerância. Aos de fora desta redoma ficou a função do apocalipse.
O ensaio chama a atenção para a incapacidade que temos hoje de acompanhar, acolher e despedir-nos dos moribundos. Mudar essa atitude já é um bom começo. Despedir-se de alguém, sabendo que um dia será nossa vez, é um antídoto contra a perigosa onipotência que nos desumaniza. É bom lembrar, só os humanos sabem que vão morrer.