Papai sabe tudo?
Reflexões sobre a paternidade contemporânea
Havia um seriado americano intitulado: Papai Sabe Tudo. Tal seriado era a banalidade do cotidiano elevado à categoria de pequenos dramas leves. O pai, como diz o título, tomava o centro dos dramas para resolver os problemas: era árbitro, mediador e bom conselheiro dos problemas de seus filhos adolescentes. Tudo isso se passava quando a década de 60 ainda era inocente. O engraçado, é que um tempo depois se soube das fofocas de bastidores: os adolescente atores eram desajustados, a mãe do seriado abusava de barbitúricos e sabe se lá o que fazia o Pai, pouco importa. O que conta era a fachada.
O pai até então era quem sabia, a figura da sabedoria tinha cabelos brancos, a experiência contava. Desde a década de 60 o pai vem perdendo seu trono. Ou melhor, vem abdicando. A rápida transformação do mundo desde o pós guerra deixou mais de uma geração atônita, mal se acostumava a uma mudança já chegava outra. O pai se deu conta que sua sapiência já não servia. Olhava para frente junto com os filhos e, no máximo, tinha um palpite sobre por onde deveriam ir.
Já o pai de hoje sabe que não sabe nada. Numa tentativa de estar mais perto dos filhos aboliu a diferença, agora o pai é camarada, tenta viver na onda dos seus filhos adolescentes quando não na frente deles. Isso por que o lugar do saber mudou, estaria na frente, e mais do que isso o ideal de ser também estaria na frente, o ideal é ser jovem.
Mas tudo isso, como influiu na paternidade contemporânea? Quem é o pai de hoje? Que valores ele tem a legar aos seus filhos?
O pai é um crítico de sua filiação, sabe, a princípio, que não quer reproduzir a paternidade de que foi objeto, quer ser diferente, o que o torna acima de tudo alguém que sabe o que não quer ser, mas pouco sabe do pai que poderia ser…
O pai moderno é democrático, ele se recusa a usar de uma autoridade que se baseie na pura expressão de uma prerrogativa apriori. Ele não sabe ser autoridade tanto quanto não acredita em sua eficácia.
O pai é hedonista, muito menos na prática do que no discurso. O pai que passava os valores do trabalho e do sacrifício já era. A profissão e o estudo hoje devem ser um parque de diversões, um lugar de criatividade e desafios. A inteligência deve ser voltada para conseguir um “trabalho não trabalhoso”, ou melhor, um ofício que seja uma paixão tal que faça esquecer que dar duro seja um trabalho. O lema do pai: o importante é ser feliz.
Quando escutares alguém te desejar que sejas feliz podes ter certeza que estás na frente de alguém que não tem nada para te dizer. O lema da felicidade é a saída para o vazio de opiniões. O mínimo que se espera de um pai é que queira o melhor para os seus, mas a felicidade é intransitiva, é o caminho que aponta para todas as direções.
O pai é saudosista, já é pai mas não resolveu seus dramas com a adolescência, considera que ela é o filé da vida e teme estar de fora. Tem medo de envelhecer, tanto mais por que quanto mais velho mais por fora, menos sabe das coisas, mais descartável.
Quando precisa evocar algum tipo de essência, este pai não vacila em comparar seus filhos consigo, acha-os moles e pouco persistentes, pede que os filhos lhe sejam gratos pela educação menos rígida que lhes deu, mas aponta aquela severidade como a que teria sido capaz de fazer pessoas mais valiosas. Educa seus filhos para que gozem prazeres e direitos, mas cobra-lhes esforço e deveres. Se não vacila em achar que seus filhos deveriam ser “melhor educados”, vacila em achar que ele deveria parecer-se com seu próprio pai. Ao apontar como ideal um lugar que ele não ocupa, deixa vazia a vaga do pai.
O desencontro de gerações que já se deu pela distância, hoje se dá por excesso de proximidade. O pai de hoje pode ser definido como o pai amigo. Na falta de hierarquia de valores e saberes, escorrega e se identifica com o filho. Para chegar perto do filho, e do que ele julga ser seu tempo, a tática é usar o boné para trás também.
“Você é quem sabe”, quantos adolescentes já ouviram isso quando buscaram uma opinião. O pai contemporâneo não tem muito a dizer, curiosamente esquece que, se pergunta, é porque o filho não julga ter a resposta.
O pai contemporâneo acredita que o tempo em que vive, seus hábitos e modo de vida, serão radicalmente diferentes do tempo em que seu filho viverá sua vida adulta, de tal modo que seus conhecimentos de nada valem para ele. Tarat-se de um paradoxo, pois poucos séculos foram tão vertiginosos em mudanças de costumes como o último e, mesmo assim, o pai, que já sofreu transformações radicais julga que a educação que recebeu foi suficiente para formá-lo para a vida adulta. Sendo assim, porque acreditar que seu legado seria insuficiente para o futuro de seu filho?
O pai moderno é essencialmente culposo. Visto que pouco reconhece do valor de seus ensinamentos e de sua jurisprudência, precisa realizar sua obra com muito trabalho físico. Já que não vale pelo pai que é, deve se provar no que é capaz de fazer. Ativo e polivalente, ele também é mãe, deve saber trocar fraldas, dar de mamar, dar banho e cuidar das crianças tanto quanto a mãe. Se isso não basta, deve jogar futebol com o filho na Redenção, ir ao jogo e levar a filha para comprar roupas. Deve estar nas apresentação da escola das crianças e levantar à noite para atender o bebê. É o fim do pai provedor, aquele que bastava com as carraspanas e o salário entregue à mulher para as despesas da casa.
Extremamente severa com esse modelo tradicional de pai, a ficção de nosso tempo o acusa de ter se afastado de sua própria sensibilidade, tornado-se uma máquina, frio, calculista, provedor de bens que hoje os filhos decretam insuficientes. O pai dos tempos do yupismo reproduziu, à sua moda, o modelo do pai provedor, mas com um agravante: abandonou a tarefa de educar, restringindo-se ao fornecimento de bens e comodidades. Trata-se de um enxugamento radical da função do pai, de austero e silencioso ele se deslizou para uma ausência real. A partir de vários filmes, propagandas, novelas e tantas produções onde este pai distante é acordado por seu filho para uma nova sensibilidade, uma relação menos materialista com a vida, abrem-se alas para este novo ideal: o pai que sabe viver.
É importante situar que a destituição do pai sábio, caminha junto com o pai provedor, aquele a quem se deve ser grato porque criou e, quando pôde, deu estudo aos filhos. Reclamamos hoje dos outrora inquestionáveis silêncios do pai, de seu antes indiscutível distanciamento para com as lides da puericultura, de seu agora imprescindível envolvimento emocional com a família, da destinação de seu tempo livre com a prole e assim por diante. Talvez nunca se tenha pedido tanto de um pai.
Se já era discutível o quanto um pai podia ensinar sobre o dever, como fica agora que ele quer ensinar o caminho do prazer? Isto coloca-nos frente a um problema: os humanos tem uma relação tortuosa com a obtenção de seu prazer, ele acontece melhor em condições adversas: todo amante sabe do gosto de um prazer roubado. O leito se reserva este espaço de cumplicidade, ali ocorre tudo aquilo que todos fazem escondido de todos e julgando-se ímpares em suas banais invenções amorosas. Mas como é que fica quando o dever invade a cena do prazer? Impondo aos filhos o imperativo do gozo e da felicidade tornamos oficial aquilo que sempre teve sua cotação no paralelo. O escoadouro de todas estas espectativas é sempre o binômio amor-sexo, juntos ou separados são a fonte de todas as expectativas de nosso tempo. Sendo assim, os filhos do pai moderno tem o compromisso de ser grandes amantes.
O “papai que não sabe nada” também deposita grandes expectativas no amor. Chamado de idade do lobo, ou adolescência tardia, o fenômeno é que este homem resolve que a vida ainda lhe deve algumas promessas incumpridas (vide o filme Beleza Americana). Separações, enlaces com mulheres bem mais jovens (duas de vinte), fazem um alinhamento com a juventude dos filhos, apagam as marcas do tempo que poderiam preservar algum tipo de alteridade.
O conflito de gerações, origem de tantos mal-entendidos na história das famílias, é também fonte de algumas soluções. Há coisas que são ditas para serem ouvidas muito tempo depois, é assim que funciona a comunicação entre pais e filhos. Os diálogos são arrastados no tempo e geralmente a resposta do filho chega tarde demais. Só depois que o pai se foi para o outro lado, o filho consegue terminar aquele diálogo, dar sua resposta àquela acusação ou conselho do pai. Terá que responder a seu modo, usando toda sua vida, através da educação que dá a seus filhos, fazendo suas escolhas. Talvez uma vida inteira seja um diálogo de desencontros entre pais e filhos e graças a estes um ideal se traça.
Trocando em miúdos, talvez o novo pai não seja essencialmente diferente do anterior. O pai silencioso e sorumbático da família tradicional tampouco sabia muito, a diferença é que ele acreditava em suas convicções. O novo pai viu suas certezas cairem com o muro de Berlim e o fim da missa em latim. A adolescência tardia que sente e quer compartilhar com o filho, talvez seja a de todos nós, órfãos de fés e utopias. Assim, também a mãe precisa administrar a inadequação que sente para o cargo e paga suas contas com culpas.
Poucos ideais tornam-se tão infactíveis quanto o de ser felizes, o de gozar mais do que os seus antepassados, de fazer a céu aberto aquilo que é bom fazer escondido.
Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora em 12 de agosto de 2000.
Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Testemunhos de um Percurso de Escola – Número 85, Ano IX, novembro 2000.