Pobre Rottweiler

Sobre altruísmo

No meu caminho não tinha uma pedra, tinha um rottweiler. Ele montava guarda em um estabelecimento comercial que fechou, era um desses cães de aluguel. Meu problema é que sempre me emociono por coisas ridículas e erradas e isso novamente aconteceu. Não podia vê-lo ali em seu território inóspito, amarrado e solitário que me cortava o coração. Muitas vezes, a caminho do consultório, cheguei a atravessar a rua para não sofrer. Para piorar as coisas, na calçada em frente ao lugar guardado pelo animal acamparam vários moradores de rua, vivendo ao relento entre trapos e restos de comida espalhados. Seria deles que eu deveria me compadecer, mas não vou mentir, meu coração amolecia pelo rottweiler abandonado.Após alguns trajetos, perguntei-me a razão dessa sensibilidade fora de propósito, o porquê da injustiça de meus sentimentos. A explicação mais óbvia que me ocorreu é similar àquela que enunciam os que se ocupam de animais maltratados: consideram que eles precisam de ajuda porque não têm livre arbítrio, são vítimas passivas de nosso descaso e maldade, enquanto os humanos têm. Lamentava ao cão a falta de liberdade, a solidão, coisa de que mesmo aqueles pobres diabos não padeciam, pois eram livres e estavam em grupo.

Mas havia algo a mais: animais domésticos são para nós fonte de inúmeras projeções, representam as crianças que fomos, os filhos que se teve ou não. Nem gosto dessa raça de cães, acho-os uns brutamontes perigosos, só teria motivo para temê-lo, mas ao ver o rottweiller ali sem ter com quem brincar, nem donos para dar-lhe algum carinho, encontrei ecos da minha infância de filha única, das tantas jornadas de brincadeiras solitárias que tive. Minha tristeza tomava como objeto a mim mesma, numa leitura auto-compadecida do meu passado. Como se vê, meu altruísmo é do tamanho de uma noz. Mas não creio ser mais egoísta do que a média dos humanos.

Proponho ao leitor que também passe seus bons sentimentos no raio X, pois eles raramente não atendem a motivos autocentrados. Desconfio dos que se arvoram ser grandes corações, dos amores desinteressados, da vontade de parecer uma boa alma. Não quero dizer com isso que somos incapazes de altruísmo e solidariedade legitima, apenas que nosso preferencial objeto de compaixão e amor somos nós mesmos em uma medida maior do que estamos dispostos a admitir. Não custa ser um pouco sincero consigo mesmo, sem isso ficamos a mercê da influência de qualquer rottweiler que se atravesse em nosso caminho.

02/10/10 |
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