Pobres Diabos
Texto sobre os atiradores de Washington, serial killers
A caçada ao franco atirador de Washington terminou num misto de alívio e decepção. Procurávamos um demônio e encontramos dois pobres diabos. Não será desta vez que teremos alguém que possa nos explicar o que é o mal. O bandido e seu comparsa parecem ter poucas palavras para dar conta de seu comportamento absurdo. São apenas mais uns dos tantos marginais ao sistema e com uma cota de fracassos tão iguais às de tantos outros.
Neste caso, a psicologia usual nos abandonou. Eles são sem grandes traumas, sem grandes ideologias malignas, são desconcertantemente parecidos com muitos que vagam por este mundo. O que são afinal?
O problema é que John Allen Muhammad e John Lee Malvo aparentemente não possuem causa, não tem reivindicações, são apenas eles mesmos. Frutos de sua história sem rumo e de uma sociedade que dá pouco espaço para fracassados. Mas isso também pouco ajuda, afinal se todos os fracassados pegassem em armas não haveria vítimas suficientes.
A ficção contemporânea nos ensinou algo bem diferente sobre o serial killer: seriam inteligentes, poderiam até agir bestialmente, mas sua ação teria um norte. Por trás de tudo haveria uma meta, ainda que estúpida, um objetivo escuso, uma vingança, uma tara. Supomos que eles querem nos dizer alguma coisa, desafiam um policial ou psiquiatra para que este encontre o sentido perdido. A morte das vítimas não seria vã, elas seriam portadoras de uma mensagem. O serial killer de filme não dá ponto sem nó, tudo encaixa, quem, onde e quando são coordenadas de um mistério a decifrar.
Os especialistas em assassinos desta natureza devem ter visto muitos filmes pois procuravam, neste caso, outro perfil: um branco, mais instruído, mais jovem e com uma situação financeira melhor. E convenhamos, Muhammad é bem diferente de Hannibal.
Mas a realidade nos acorda. Estes assassinos vem reafirmar o escândalo das teses de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. Procuramos diabos e encontramos seres humanos, demasiado humanos. O certo é que a ficção nos fazia, sem saber, dois favores: primeiro deixava o mal longe do homem comum, quem mata gratuitamente ficaria fora da dimensão humana, seria um monstro sem nenhuma relação conosco; em segundo lugar ainda oferecia uma explicação fácil para o aparente sem sentido de certos crimes.
Fazemos com serial killer no plano pessoal o que na história já fizemos com Hitler, Mussolini ou Stalin, elegemos monstros que nos afastam de nós mesmos. Os responsáveis por tais brutalidades são retirados dos parâmetros humanos e temos a humanidade redimida. Os povos que os seguiram estavam apenas atrás de loucos, eram, no fundo, ludibriados.
O serial killer é menos um quadro clínico e mais uma peça de ficção, é um monstro da mitologia contemporânea, uma anomalia com ar de cientificidade, porém legítimo representante atual dos eternos seres do mal. Um monstro no sentido clássico: dar contorno ao inominável, ao brutal, ao enigmático.
Fora dos livros e das telas eles não partilham um quadro clínico comum. Nem todos são necessariamente sociopatas, neste conjunto encontramos paranóicos, esquizofrênicos e até quadros fora do campo da psicose. Eles provêm de todas as classes sociais, alguns são inteligentes, mas boa parte é idiota, uns tiveram acesso à educação outros não, ou seja, nada faz conjunto. O serial killer é a criação pela ficção, repercutida pela mídia, do nosso anseio de dar uma face inteligível para o enigma do mal.
Mas que queriam estes assassinos? Afinal tanto fazia a vítima, tanto faz qualquer coisa. Mobilizaram a sociedade americana inteira e conseguiram um efeito Bin Laden, no sentido de revelar a fragilidade aos que se sentiam tão seguros. Se a vítima podia ser qualquer um, logo todos poderiam ser vítimas, então a vítima era a própria sociedade como um todo e mais uma vez os atiradores acertaram o alvo, todos ficaram alarmados e se sentiram atingidos.
Nos ataques terroristas, apesar do medo, ainda tínhamos o abrigo da lógica. Os alvos não eram quaisquer, o assassino tinha motivos. Os terroristas atacam uma cultura. Os corpos mortos são um meio para se enaltecer uma outra cultura, um sacrifício a um outro deus. Os franco-atiradores de Washington visavam os corpos mesmos. Projetavam nas suas vítimas sua própria desumanização, nós não somos nada, não nos reconhecemos em ninguém, logo ninguém é nada, somos como gado. Caçavam gente como se caça animais, vai para o chão quem passar casualmente na alça de mira.
Muhammad andou trocando de deus, depois, dizia ser ele mesmo o próprio deus. Como acreditamos que os deuses controlam a vida e a morte, ser um instrumento da morte era ser divino na sua louca lógica particular.
Certamente Muhammad vai ser executado pelo estado. Vamos nos sentir vingados e provavelmente não vamos perder o sono refletindo sobre os destinos de sua alma, mas será que a pena de morte não é mais um dos ingredientes que fazem a brutalidade das relações atuais? Se o estado pode matar por que não eu?
Provavelmente vai vir um neurologista dizer que ele tinha baixa taxa de serotonina como outros criminosos. Até poder ser, mas acho que falta é miolos a quem não inclui nossos valores sociais como operantes no caldo que cultiva estes malucos. A questão é que buscamos respostas nos lugares errados: procuramos no âmago do ser e dentro do cérebro o que é certamente social. Nosso tempo é cego por seu narcisismo e procura sempre as respostas no plano de patologias individuais e não questiona os mecanismos da desumanização moderna.
Se você começou este artigo para entender finalmente o cérebro doentio dos franco-atiradores vai sair frustrado, mas não me mate, verifique apenas se você já não pensou em livrar do mundo um punhado de seres que já se atravessaram em sua vida. Pense se já não teve mesmo um “dia de fúria”. Por diversas razões todos já tivemos o desejo de eliminar nossos desafetos, o problema é que nem todos, por sorte, compramos um fuzil, mas o assustador é pensar que o limite é tênue.
A psicanálise foi muito combatida por dizer que somos feitos da mesma farinha que os criminosos e loucos. O que nos diferencia não são os impulsos perversos, estes experimentamos da mesma forma, o que nos diferencia é saber lidar melhor com nosso inferno íntimo. O crime continua sendo uma possibilidade humana e segue próximo de todos nós, ao lado da loucura, balizando nossos limites.
PS: O irônico é que muitos já suspeitavam que havia um louco armado capaz de tudo um Washington
Caderno de Cultura Zero Hora, 2 de novembro de 2002
Também publicado no “Correio da APPOA” número 109, Ano IX, Dezembro de 2002