Por que tão sério?
Sobre o filme Batman o Cavalheiro das Trevas
O demoníaco Coringa da derradeira atuação de Heath Ledger (em Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan) roubou a cena. O jovem ator australiano construiu um vilão cheio de tiques e olhares alucinados, representando uma encarnação do mal digna da linhagem do Hannibal de Hopkins e do Iluminado de Nicholson.
Complementar a essa performance, está a brincadeira que o Coringa faz com a psicogênese do mal: cada vez que ameaça cortar ou matar uma de suas vítimas, compraz-se em narrar um trauma de infância, que teria dado origem às suas cicatrizes e à sua crueldade. Porém, ele mente ou distorce, pois ele sempre conta um episódio diferente. As versões giram em torno duma história familiar trágica e triste, conseqüência da qual teria ficado em seu rosto um corte em ambas comissuras labiais que lhe impõe um “sorriso” sinistro. Um trauma que justificaria o fato de que ele se divirta com o sofrimento alheio.
A maldade gratuita do palhaço demoníaco de Ledger ridiculariza nosso desejo de controlá-la, como se ao lhe saber a origem pudéssemos também prevenir e, principalmente, garantir que ela não se expresse. Enigmaticamente, ninguém é alheio ao mal: todos nós retiramos algum prazer da evocação da violência e do assassinato em nossos sonhos e devaneios, na ficção, nos jogos.
É no bordão usado pelo Coringa quando está subjugando suas vítimas, que talvez possamos encontrar um esboço de resposta sobre a origem da maldade. Ele lhes pergunta: “por que tão sério?”, enquanto tenta matá-las. A seriedade a que se refere é a de não estar rindo, como ele próprio, cuja cicatriz o força a uma boca sempre sorridente, tão artificial como a das mulheres excessivamente plastificadas. O patético riso do Coringa parodia a felicidade compulsiva e aparente, exibida nos comerciais e nas revistas de celebridades. O Coringa é o monstro do império do gozo. Todos devemos ser ricos, ociosos, que alguém nos sirva e divirta o tempo todo, ter orgasmos múltiplos, não suportar contrariedades nem enfados. O problema é que na vida a chatice é regra e a felicidade exceção. Nesse simulacro de alegria, é preciso viver sempre como se estivéssemos a bordo de um iate, rodeados de amantes, lindos e jovens. Frente a isso, como suportar os enfados dos vínculos amorosos, familiares, do trabalho? O Coringa não tem essas mágoas, ele é louco de rasgar dinheiro, seu gozo desmedido não tem preço, está sempre a seu dispor. Esse vilão na sua plenitude é sob medida para nosso mundo imediatista: ele não quer, ele pega.