Pornografia dos abismos da alma
Sobre o filme Anticristo
A impressão de Anticristo de Lars von Trier é que os demônios foram conjurados à toa. Eles comparecem, assombram, mas dizem pouco. As cenas são magníficas, e algumas inesquecíveis, a questão é que o enredo não convence. O filme produz mal estar, mas realmente não nos faz pensar numa direção diferente, é um sofrimento gratuito, uma pornografia dos abismos da alma para render pouco.
No filme um casal perde seu único filho, ainda pequeno, que morre ao cair duma janela enquanto os dois faziam sexo. A mãe se deprime profundamente, se afunda no luto, e o pai, um psicoterapeuta, recupera-se precocemente da perda. Na tentativa encurtar o caminho do luto, ele quebra a regra básica de qualquer tratamento, conduzir a cura de alguém com quem se está emocionalmente envolvido. Depois duma mancada dessas, o que costuma vir é o pior, e vem. Ele resolve tirar os medicamentos dela e a faz enfrentar a dor de peito aberto, disse que estaria ao seu lado.
Ora, se ele fica como terapeuta, ela perde um pouco o marido, e para quem vem duma perda… O tratamento é conduzido da forma mais senso comum impossível, não guarda qualquer verossimilhança com o que costuma ser feito nesses casos. Com tal tratamento o desamparo da mãe só piora e abre-se a porta do inferno da loucura.
Como não sabemos o que é delírio e o que é realidade, vale dizer que ela se sentia de culpada pela morte do filho. Ela havia visto a criança, e poderia ter impedido a catástrofe, mas não parou seu gozo para impedir a queda.
De qualquer forma aqui chegamos ao ponto da suposta complexidade psicológica: como uma mãe coloca o gozo antes dos seus deveres maternos? Depois descobrimos que a sua vocação materna era no mínimo perversa, ou seja, “durmam tranqüilos, ela não era boa mãe mesmo, talvez por isso gostava tanto de sexo”. Ou seja, a culpa fica colocada na estirpe ancestral da culpa feminina pela queda do homem. Resumo: as mulheres são moralmente mais frágeis, mais lascivas, mais loucas e o mal reside e tem seu começo no pecado da mulher. Enfim, misoginia básica que qualquer religioso tradicionalista aplaudiria.
Lars von Trier vive cercado de polêmicas para fazer render uma filmografia de densidade duvidosa, ou realmente tem algo a dizer? Com esse filme me inclino pela primeira opção.
Publicado no Segundo Caderno da Zero Hora, em 10 de outubro de 2009 – a questão é sobre a polêmica ao redor do filme Anticristo de Lars von Trier:
Excelente!