Precisamos falar sobre o Kevin

Sobre o livro de Lionel Schriver e os desencontros na maternidade

Durante milênios, submetemo-nos docilmente ao mandato do crescei e multiplicai-vos. Os homens entravam com o nome, nós com o corpo. Úteros escravos, peitos serviçais, não nos cabia escolha. Mas fomos progressivamente assumindo a liberdade que o progresso da anticoncepção nos deu. Aprendemos que era possível escolher se iríamos engravidar ou não, sem ter que virar freiras ou celibatárias.

 À medida que as mulheres começaram a duvidar se queriam mesmo ter filhos, moralistas, filósofos, padres e políticos passaram a exaltar a magnitude social da função da maternidade. Para tanto tentaram convencê-las de que elas eram sagradas, portadoras de um instinto natural que as tornava capazes de total entrega amorosa aos seus filhos.

É preciso uma coragem insana, como a da escritora americana Lionel Shriver, para descrever uma maternidade e um filho monstruosos. A personagem Eva era uma viajante, uma mulher livre, e sua vida parecia plena mesmo sem sentir o chamado do instinto materno. Mas por amor ao marido, que desejava ser pai, e iludida com a idéia de que estaria embarcando em mais uma aventura, resolveu engravidar. O problema é que ela se arrepende já nos primeiros acordes. Embora se trate de ficção, o que lemos, é um relato angustiante das fantasias que se escondem no lado negro da experiência de ser mãe. Ela vive a gestação como a personagem do filme O Bebê de Rosemary, seu parto parece a irrupção do alienígena destruidor de Alien e o filho, Kevin, com quem desenvolve uma relação paranóica, comporta-se como a encarnação do demônio assassino, tal qual em A Profecia.

No livro Precisamos falar sobre o Kevin (Intrínseca Editora, 2007), o filho-monstro já não é herdeiro de Satã. Ele é fruto da rejeição materna, associada a uma figura paterna frágil e estereotipada, e parece ter nascido para espezinhar sua mãe, a qual mal consegue esconder o quanto o filho lhe é estranho. Kevin comete um múltiplo assassinato e seu crime condena mãe e filho a viverem um para o outro. Shriver avisa: a maternidade pode destruir sua vida!

Como toda fantasia, o livro exagera nas tintas, mas o eco do seu sucesso global mostra o acerto na descrição desse pesadelo possível. Agora, que podemos escolher e sabemos como são importantes os primeiros vínculos, nos apavora o tamanho e o risco da tarefa. A primeira Eva foi condenada a parir com dor; essa Eva descobriu que depois do parto pode doer ainda mais. Ela tinha razão, a maternidade pode ser uma viagem fantástica, mas só descobrimos o tanto de neuroses que carregamos na mala quando já tivermos chegado ao destino. Ganhar um filho é perder-se do mundo conhecido.

As que ousaram embarcar, se descobriram chorando quando deveriam estar eufóricas e viveram momentos de ódio do próprio filho, de arrependimento, até de loucura. Mas esse é o lado oculto, e em segredo nos consumimos em vergonha e culpa. Eva é uma caricatura, mas também é um retrato fiel de sentimentos que ocorrem com todas as mães. Todas.

01/01/07 |
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