Presentear

Sobre o consumo natalino

A religião cristã ganhou, pelo menos nos rituais, a guerra das religiões e colonizou o mundo ocidental. Ninguém mais está livre do Natal. Além da refeição opulenta, faz parte da noite a troca de presentes, hoje uma prática burocrática, estereotipada e universal. Por isso não são insignificantes as acusações de que a verdadeira celebração do Natal seria ao “deus do consumo”, cultuado no templo do Shopping Center, com a imolação sacrificial do décimo-terceiro salário ou do cheque especial. 

Boa hora para retomar o significado dos objetos em nossa cultura enquanto representantes de tudo o que se quer viver ou ser. Damos um jeito de dependurá-los sobre o corpo ou a casa, de forma a deixar bem claro ao outro o que ele deve pensar de nós. Os teóricos chamam isto de “bens posicionais”, espécies de coordenadas que permitem com que sejamos decodificados em sociedade a partir do que parecemos ou possuímos.

O objeto vale também pelo que carrega do doador. Brinquedos ou roupas infantis, por exemplo, levam a marca do herói televisivo de ocasião: a sandália é “da Xuxa” e pouco importa o modelo do sapato. Para os adultos, pode (nem sempre) ser mais sutil, mas o espírito é o mesmo. Assim demonstramos que qualquer coisa que usamos ou portamos traz em si parte daquilo que amamos, nos interessa ou queremos ser.

O objeto é veículo de transformação de amor em identificação. Ao amar alguém, desejaremos embutir em nosso ser, receber dele, algo que o represente, assim nos tornaremos um pouco como ele, ele fará parte de nós, também lhe daremos algo, para que ele tenha em si um pouco de quem deu e portanto esteja de alguma forma concernido ao doador.O amor aqui referido não é apenas o erótico, adulto, é também o filial, o fraterno, o de admiração e tantos outros. Está aí um princípio que talvez explique porque presentear faz parte de rituais e trocas desde antes da sociedade de consumo sonhar em existir, porque o presente é um objeto que representa um ser humano para outro.

Dar e receber presentes pode ser um tormento. É o momento em que se espera que saibamos compreender o outro, para agradá-lo, em geral é quando percebemos que quase ninguém sabe de nós. Tentamos nos aproximar e, como sempre, encontramos alguma forma de solidão. Talvez por isso a solução dos amigos secretos, dos presentes encomendados, em série, de moda. O complexo ato de trocar objetos se simplifica graças à intervenção do deus do Shopping. Não chega a ser um consolo…

18/02/02 |
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