Prisão Domiciliar

Violência urbana

Só saia de casa à noite se for indispensável. Ao entrar e sair de seu domicílio verifique o território. Crianças e jovens devem circular sob tutela. No transporte público, observe os outros passageiros, jamais descuide seus objetos pessoais. Na rua, detecte atitudes suspeitas e afaste-se. Instale grades, cercas elétricas, câmeras, cães e contrate um serviço particular de policiamento armado. De carro não abra os vidros, não pare. Viva em condomínios ou bairros fechados. Se ameaçado, obedeça. Pensando bem, não saia de casa de dia também, só se for indispensável. 

Esse modo de vida pode ter vários nomes: prisão domiciliar, presídio semi-aberto às avessas, toque de recolher, talvez um pouco de cada. Curioso é que parecemos estar nos conformando, não sem queixas, mas no fundo vamos passivamente incorporando cada novo limiar do cerceamento da nossa liberdade. Donde provém a capacidade para se adaptar a essa nova forma de prisão?

Farei uma comparação que infelizmente não é estapafúrdia. Recordo um questionamento que corajosamente o psicanalista Bruno Bettelheim fez ao sucesso da história de Anne Frank, cujo diário é um clássico. Muitos judeus enfrentaram o horror nazista lançando mão de subterfúgios como a clandestinidade, a resistência e a emigração. Qualquer desses recursos passava por reconhecer a magnitude do perigo, assim como a urgência de tomar as providências para tentar sobreviver. Precisaram abrir mão da coesão familiar (colocando os filhos misturados às crianças de famílias não judias, por exemplo), da identidade, dos bens, da pátria. A família Frank tentou o esconderijo como solução. Lá dentro, devidamente equipados, fizeram o possível para manter suas tradições, a formação cultural dos filhos, enfim, um microcosmo daquilo que julgavam essencial. Pereceram em sua ratoeira sem saída, mas tentaram sobreviver a seu modo. A análise de Bettelheim não se centra sobre a opção dos Frank, ele lança sua crítica sobre nós, leitores do Diário de Anne Frank, perguntando por que, frente a tantas histórias de heroísmo disponíveis, muitas envolvendo depoimentos de crianças e jovens como Anne, foi essa a que se celebrizou.

A hipótese de Bettelheim é de que essa história desperta uma empatia com a solução da família Frank. Mesmo nesse contexto letal, em que os fornos crematórios fumegavam, eles optaram por “retirar-se a um mundo extremamente particular, meigo, sensível, e lá apegar-se o mais possível ao que eram suas atitudes e atividades cotidianas habituais, embora cercado por um turbilhão prestes a engoli-los a qualquer momento.”. Pois bem que essa touca cabe em nossas cabeças. Pensando bem, não dá mais para ignorar que a violência lá fora vai buscar-nos dentro das nossas ratoeiras familiares. É preciso sair, propor soluções, questionar nossas responsabilidades. Por alguma razão estamos entrando em comunhão com aqueles que nos aprisionam, por que? Culpa? Identificação? Infantilidade? Ficar trancados é como ligar o gás: vamos ficando sonolentos, até o fim…

26/07/06 |
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Um Comentário
  1. Augusto Reis permalink

    “Quando não encontramos o mal em nosso próprio coração, ele bate à nossa porta.” C. G. Jung

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