Professores de leitura
Ler é uma aprendizagem, que requer mestres. A propósito da Feira do Livro de Porto Alegre.
Mara, professora aposentada de português, sente saudade de procurar textos para seus alunos. Adorava ler com a perspectiva de indicar trechos aos jovens, para os quais cada texto abria-se em descobertas. Recorda com particular carinho do trabalho com um poema de Cecília Meireles, “O anjo da noite”, sobre o guarda noturno, hoje figura extinta. Nas palavras finais dessa poesia, que narra as belezas da noite, aparece o outro lado, seu mistério assustador: “o guarda noturno está tomando conta da noite, a vagar pelas ruas, anjo sem asas, porém armado”. A escuridão, onde cada um se entrega à inconsciência, requer providências de segurança. No lugar da vigília, a presença vigilante de um anjo da guarda que nos proteja dos precipícios interiores, afastando os monstros que moram nas trevas íntimas. Imagino o prazer da professora ao fazer reverberar essas metáforas nos alunos, para quem a literatura era ainda uma experiência quase virgem.
Num livro, chamado “Borges oral & sete noites”, encontram-se reflexões onde o escritor argentino aborda o encontro do texto com a voz. Depois de ficar cego foi obrigado a passar à narrativa oral, porém, suas conferências e referências nunca abandonam o livro como hábitat, lugar de onde emana uma presença. Era leitor apegado, voltava inúmeras vezes aos seus clássicos prediletos como quem vai a uma praça ou uma praia em busca de um estado de espírito. Mesmo sem visão comprou uma enciclopédia: “lá estavam os vinte e tantos volumes impressos numa letra gótica que não tenho condições de ler, com os mapas que não tenho condições de ver; o fato era que os livros estavam lá. Eu sentia uma espécie de gravitação amistosa que vinha deles. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, homens, temos”. Ele precisou dos olhos de outros leitores, mas aos que lhe emprestavam a voz ele acabava contando histórias sobre o que estavam lendo, guiava-os pelos labirintos imaginários de sua Biblioteca de Babel, pelas páginas do Livro de Areia. Diziam que suas aulas de literatura eram de fato de leitura.
Os livros são lugares mágicos aos quais nos entregamos sem medo, porque a voz do autor nos conduz com segurança pela trama que ele fantasiou e organizou para nós. Se tivermos sorte, como os alunos de Borges e da professora Mara, contamos com a voz de outros leitores mais experientes, que nos acompanham ou orientam, pais e mestres que partilharam suas leituras. O livro é um sonho ou um pesadelo seguro, como uma noite vigiada por um anjo. Armado, é claro, pois não somos bobos.