Quem está perdido?

Sobre seriado Lost

Moramos numa ilhota de grata ignorância, circundados pelas negras águas do infinito e não nos está predestinado  empreender longas travessias. H. P. Lovecraft

Se você ainda não ouviu falar de Lost, um seriado americano (da ABC, no cabo pela AXN, na aberta passa na Globo), prepare-se: com a participação de Rodrigo Santoro na temporada que estréia em Março, provavelmente haverá mais brasileiros aderindo à “lostmania”.

Difícil dizer se é bom, para mim foi um vício de curta duração. De qualquer forma vale a pena assistir, nem que seja para conectar-se com algo que faz grande sucesso num público que define tendências. Talvez também seja válido para pensar como será a TV no futuro, dado a uma certa interatividade do seu público cativo, que usa a Internet para descobrir pistas sobre a seqüência, que por sua vez acabam influenciando a trama. Será que a TV tende a uma audiência menos passiva?

Mas o tema que me interessa refere-se à crítica que tenho escutado do público não adolescente que tenta acompanhar a série ou a assiste resmungando. Eles partem de uma constatação irrefutável: o seriado não tem pé nem cabeça. Sua trama é difícil de classificar, o eixo aproxima-se dum drama, mas na verdade é um feixe de todos os gêneros, é mistério, fantasia, aventura, romance policial, pingos de comédia, vínculos amorosos e acima de tudo, há um passado significativo de cada personagem perpassando as várias histórias.

O resumo da história é o seguinte: um avião cai numa ilha deserta (depois veremos que e não é bem assim) e as vítimas não são resgatadas, sendo forçadas a aprender sobreviver. A interação dessas pessoas, aparentemente sorteadas pelo acaso, ao tentar constituir uma comunidade, é que faz o enredo. A coerção do grupo, suas lideranças e a necessária estruturação de alguma sociedade no local são igualmente protagonistas.

Sabe aquela licença poética que concedemos, mesmo a um bom filme, para que a história possa fluir? Exemplo: o mocinho e a mocinha entram numa casa abandonada, encontram um carro também empoeirado e saem dirigindo. Veja só: a chave está à mão, o carro tem gasolina, a bateria está carregada e os pneus ainda estão cheios. Só não pega de primeira para dar tempo do bandido chegar mais perto e aumentar a tensão da cena. A gente engole essa parte para fruir do resto da história que é mais costurada de sentido e saímos felizes do cinema, até esquecendo desses detalhes menores. Ou então certos gêneros pedem de entrada uma crença do tipo: os mortos voltam para se vingar. Aceitamos a premissa e o resto do enredo usa a lógica corriqueira. Agora imagine um filme onde seja isso o tempo todo, ou seja, o inverossímil é requisitado a cada episódio. Depois que já engolíramos que um avião possa se espedaçar no ar, cair de e não morrerem todos, ou que um paralítico possa voltar a caminhar magicamente, é preciso aceitar que estão perdidos numa ilha tropical e são atacados por ursos polares. Bom, por aí vai a trama.

Não pensem que faço uma crítica, acho que é justamente essa mistura, esse nonsense que constitui o interesse. Quem não viu deve se perguntar: afinal, o que dá o gosto nessa sopa? Difícil dizer, as personagens até que têm uma força peculiar, embora sejam tão ou mais inverossímeis que o resto. Porém, eu argumentaria aos mais críticos que Lost é um retrato hiperbólico de como temos sentido nosso mundo, ou talvez nosso tempo. Vou enumerar três eixos que podem mostrar essa ponte.

Primeiro: o seriado retrata uma sociedade caótica e paranóica. Um destino trágico compartilhado, afinal são vítimas dum desastre, não é suficiente para criar uma solidariedade básica comum. As personalidades se superpõem ao coletivo, e o grupo se estilhaça a cada tarefa. No contexto dessa coletividade tão frágil, a consistência da trama acaba segurando-se mais nos flash backs da vida anterior de cada personagem. De resto são personalidades com extrema dificuldade de conviver. Tudo vira atrito como se a relação social não pudesse contar com uma premissa de aceitação mútua. Não bastasse isso, existem “outros” habitantes da ilha, aliás é assim que são chamados, genericamente, mas a convivência com esses “outros” é perpassada de pânico e mistério.

Ora, não é esse é o nosso trágico destino? Com o declínio do homem público, vivemos tempos de personalidades, não de comunidades. A nossa relação com o estrangeiro, especialmente se esses “outros” forem proveniente do Oriente Médio, é de pura paranóia, como se todos fossem iguais entre si e igualmente terroristas. Além disso, estamos tendo uma relação destrutiva com nosso planeta, deixando um legado de falência ambiental para nossos filhos, ou seja, a sobrevivência coletiva está em jogo e nem por isso conseguimos nos unir para parar com a insanidade predatória dos recursos de nossa “ilha”.

Segundo: tudo é nonsense. Nada faz sentido na série, eles não sabem por que estão na ilha, que por outro lado encerra seus segredos. Sendo que eles próprios possuem misteriosas ligações anteriores à queda do avião. A ilha tampouco ajuda, não está nos mapas e obscuramente parece uma entidade que os maltrata, mas é ambíguo pois também opera pequenos milagres. Está bem, mas o que mesmo no mundo hoje faz algum sentido? Depois da diminuição da influência das religiões no mundo ocidental, da perda das grandes causas e das narrativas totalizantes, ao modo do marxismo, que davam uma visão global da vida, a compreensão do mundo se fragmentou. As utopias se foram e nada tem um sentido senão particular, temos ilhas de sentido, mas nada pretensamente integral como antes. Sempre houve religiões, mitologias e ideologias que enfeixavam o pensamento sobre a vida com uma aparência de coerência. Hoje o destino parece ser aleatório, um bricolage de acasos e tiranias sem sentido. Sinceramente não sinto saudades, mas tenho que admitir que a sensação é de desamparo generalizado. A ciência bem que tenta ser um esteio, mas perdemos a ilusão dum saber completo, logo, sempre algo nos escapa. E ainda, a ciência e a tecnologia evoluíram tanto que já ninguém consegue dar conta senão de partes do conhecimento. Estamos cada dia mais envoltos por objetos que funcionam sem sabermos como, é fácil pensarmos que eles são mágicos ou sobrenaturais.

Terceiro, o ar de esoterismo que perpassa a trama. Por exemplo: há  uma seqüência misteriosa de números cabalísticos ou ainda crianças destinadas a grandes missões misticamente estabelecidas. Vivemos um tempo de refluxo do valor da racionalidade, até pelas promessas não cumpridas do iluminismo, então vamos ter que agüentar boas cotas de obscurantismo, teorias conspiratórias, simplificações grosseiras e dum analfabetismo filosófico generalizado. Se o racionalismo e a ciência pecaram por não levar em conta o inconsciente, o sujeito com seus desejos e paixões, agora vamos ter que suportar seu avesso: teorias que levam em conta a intuição, a emoção e as paixões, mas deixam de fora a realidade.

Então meus amigos, não é Lost que é “fumado” é esse velho mundo sem porteira que anda mesmo sem rumo.

Publicado no caderno de Cultura do jornal Zero Hora
Em 3 de março de 2007

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