Quem matou Jéssica Dubroff?
Sobre a precocidade das crianças como uma exigência familiar
Jéssica Dubroff, a menina que morreu semana passada na tentativa de ser a mais jovem aviadora a cruzar os EUA costa a costa, foi vítima da onipotência paterna, tal qual Ícaro na mitologia grega
Não nos parece muito surpreendente que um piloto morra na tentativa de fazer uma inédita proeza de aviação. As histórias dos pilotos que se empenharam na corrida pela primazia na travessia aérea do atlântico são empolgantes até em suas desgraças, tanto quanto os acidentes fazem parte do jogo das corridas de carro. Os pilotos sabem do risco que correm e assim resolveram viver. Afinal, haveria tanto público para a fórmula 1 se vidas não estivessem em risco?
Porém, ante a tragédia que matou Jessica, de sete anos, numa tentativa de ser a mais jovem piloto a cruzar os Estados Unidos, é difícil acreditar que ela soubesse onde estava se metendo. No primeiro choque da notícia só conseguimos pensar: o pai a matou. Também não eximimos a cumplicidade da mãe que afirma: “ela morreu fazendo o que mais adorava”. É isso que dizemos dos pilotos acidentados, que amam a velocidade e o risco faz parte de seu script.
Um piloto de aviões é alguém que resolveu dedicar sua vida a desafiar o vazio, e o faz seguindo algumas premissas, de quem sabe que o Super homem não voa de verdade. Na verdade o profissional do risco não é um louco suicida, é alguém que, mais do que seus espectadores, sabe que o espetáculo do perigo tem alguns truques: o treino, os bons instrumentos, em muitos casos até o estudo. Um piloto criança, tenha as horas de vôo que tenha, sempre se projetará no vazio como se fosse efeito de uma mágica.
É próprio da infância supor que exista alguém muito poderoso, que em última instância pode traçar os contornos de nosso mundo, desenhar as janelas e portas desde cujo interior contemplamos o arco-íris e de onde podemos nos imaginar subindo em direção ao mundo mágico de Oz. Este alguém são nossos pais. Seguros no interior dessa cálida prisão, crescemos voando na imaginação, com as asas do sonho e do brinquedo.
Muitas capinhas de fantasias de super-heróis contém uma etiqueta que diz algo como: “avise seu filho que esta capa não lhe permite voar de verdade”. Esta pequena etiqueta de alerta provavelmente deve ter passado a ser inserida após vários super heróis de um metro se estatelarem crentes no poder de suas capas. Mas, eram as capas que os sustentavam no suposto êxito do vôo do super-herói infantil?
Não é a capa em si, assim como não foi a fé nas asas enquanto instrumentos que elevou o vôo de Ícaro. Reza a lenda que o pai Dédalo construiu asas de cera para ele e seu filho Ícaro voarem. Ao fazê-lo avisou o filho: não suba demais, é perigoso voar perto do sol. O filho fascinado com a proeza que o pai lhe havia propiciado, almejara a altura máxima, encarnado no filho o sonho do pai não encontrou limites. Tal como uma irresponsável criança, Ícaro descobriu tragicamente que a morte espreita aqueles que sonham com a potência plena.
Os filhos-Ícaros descobrem à beira da morte que os heróis são feitos de truques. O filho que voa faz-se ele próprio asas do sonho de seu pai. Ícaro é prova de que o que eleva um filho aos ares, e o estatela no chão, não são as asas. Tampouco podemos acusar estes brinquedos, a capa do Super-Homem ou a espada de He Man enquanto falacioso instrumento de poder. Costumamos repassar a conta do engano à televisão, aos brinquedos violentos, mas não são estas ninharias de plástico que produzem o encantamento, é o projeto de fazer-se a sí próprio o portador da potência que os sonhos do pai-Dédalo aponta.
É difícil proteger um filho. Além dos riscos correntes, precisamos resguardá-los do desejo, que todos os pais temos, de encontrar nos descendentes a compensação de todas as frustrações que a vida nos impôs. Para o filho, o pai é o berço dos ideais que o norteiam. Quando aqui falamos de “pai”, não se trata apenas do homem que ocupa esse lugar, o genitor biológico de uma criança, lembrem-se como a mãe de Jessica apoiava o projeto.
Não é à toa, que na história mitológica, é Ícaro, o filho, e não Dédalo, o pai, que morre em nome do sonho de atingir o ponto máximo do céu, o sol. Os homens podem voar, mas não podem ser assim tão poderosos. Só podemos ter semelhante crença mediante a premissa de nos considerarmos instrumento de realização da superpotência paterna. Se fossemos filhos do Super-Homem, talvez não tivéssemos este problema, mas, como nosso pai é humano, sempre ficará em dívida com a completude. Ali onde pensamos encontrar seu fracasso, construímos nossos sonhos. E ainda o culpamos por isso!
Sendo assim, quando uma criança se atira, é a capinha de super herói que ela julga que a sustenta, mas através da idéia de estar possuindo poderes que emanam da posição de ser aquela que irá onde ninguém mais o fez. Ao fantasiar com o poderio do super herói, a criança sabe que seu pai não possui a “força”, nem nele, nem na espada invocada, mas ela acha que poderá ser ela própria o instrumento dessa potência.
No caso de Jessica estamos frente ao fato de que foi o pai que lhe pôs a capinha e lhe disse vai minha filha, ser a que fez isto antes que todos no mundo. A precocidade, o “fazer antes” da idade adulta, que fazia o virtuosismo da criança Mozart, verdadeiro herói moderno, ou as gracinhas de Shirley Temple, nos fascinam .
Mas porque seria importante “fazer antes”, antes do que? Antes de nos restringirmos a nossa miserável condição de ser apenas a pálida evocação dos sonhos paternos que nos constituíram?
Sabemos que um filho sempre será muito para seus pais, mas sempre se sentirá em dívida, faltou-lhe fazer ou ser algo. Mesmo o mais bem sucedido dos filhos, ao passar a soleira da casa paterna sente-se alguém impotente, sensível aos mais sutis humores de seus velhos pais. Mas enquanto somos pura promessa, enquanto ainda pertencemos aos pais, julgamos que quem sabe poderíamos voar até o sol. A criança prodígio o faz. O pequeno Mozart, alcançou a glória com, por e para seu pai, e todos gostaríamos de ser pais de Amadeus.
Porém sabemos que o preço pago pela criança para isso é o abandono do registro da infância. A criança não é nada boba e sabe, como os adultos, que os super-poderes que pode usar na brincadeira não são de verdade, ela pode vestir, mas também desvestir a capa, e assim descansar da inclemente exigência de “cresça e apareça” dos pais. A criança prodígio não descansa nunca, ela tem que ser sempre poderosa.
Há outras formas de se desfazer da excessiva exigência dos pais: negativas, auto-anulações, emburrecimento, doenças, enfim, a infância tem à mão uma ampla gama de sintomas tecidos na dialética da vida familiar. No caso de nossa fracassada heroína, estamos falando de uma vertente muito particular dessa questão, que é uma constante do amor de pais e filhos: o encontro do sonho do pai com a encarnação infantil deste, que aqui resultou num enlouquecido e mortal vôo de pai e filha.
Sabemos o quanto foi falsa a desculpa da mãe, talvez melhor seria “ela morreu fazendo algo que (eu) adorava”. Podemos pensar que o mandato com que vivia a pequena Jessica fosse: “seja tudo ou nada”, mas isso nunca saberemos. É difícil acreditar em semelhante conformidade com a morte de um filho, supomos que essa mãe deva se perguntar se o sacrifício valeu a pena. Por outro lado salta aos olhos o quanto essa criança estava monitorada por seus pais. É claro que ela era sintônica, é claro que uma criança não questiona e até se sente o máximo sendo a heroína de seus pais e, porque não, de seu país, berço dos recordes. Mas, para ela, haveria escolha nesses casos?
Não há dúvida que estes pais queriam o melhor para ela. Certamente tratava-se da procura de um traço distintivo numa sociedade cada vez mais massificada. Para ser alguém é necessário se distinguir nem que seja por uma bizarrice qualquer, dessas que o Guinness está cheio. Aliás o Livro dos Records já havia retirado essa categoria de piloto mais jovem justamente para desencorajar pais malucos. Voar ao longo de toda a América, sendo ainda tão criança, é algo como o Record dos Record.
Talvez valha a pena lembrar da importância da conquista do espaço nos EUA como um valor muito especial. É bom lembrar também que se trata de uma sociedade muito competitiva, onde a questão é ser o primeiro, o segundo já é um perdedor. Então, o que os pais de Jessica queriam é assim tão fora do comum levando em conta os parâmetros da nossa época?
Não acreditamos que a questão seja colocar estes pais na berlinda. Classificá-los como loucos apenas nos excluiria, julgando-nos afastando desse delírio de grandeza para com os filhos. Esse exemplo triste não só não nos exclui como nos implica profundamente como pais contemporâneos. Vivemos o tempo do quanto antes melhor. Mas para aonde vamos com tanta pressa?
Corremos em direção à superação das nossas limitações, queremos viver a vida eterna agora, queremos a felicidade agora, não no céu depois de uma vida de privações. Assim deve ser uma criança poderosa, receber tudo e conseguir tudo antes de conhecer a úlcera e os pés de galinha. A criança prodígio é gêmea da criança incontinente, consumista e malcriada, que tudo quer e tudo pode, são duas variantes da incorporação infantil da onipotência dos pais.
Os pais de Jessica não estão sós. A primeira a implicar-se foi a rede de televisão que transmitia a proeza da menina, falando quanto suas lentes instigaram o feito. Mas a transmissão televisiva pressupõe um público: do outro lado da telinha estamos todos nós. Por “nós”, entendemos todos os pais contemporâneos, que pós hippies e yuppies procuramos sempre fazer o melhor, sem saber exatamente o que seja isso. Com freqüência resolvemos este impasse incentivando a precocidade, vestindo nossas filhas de mini-peruas e os meninos de proto-surfistas, ensinando-lhes inglês e computação a partir dos três ou quatro anos, fazendo-os “escolher um instrumento musical” antes dos cinco. Queremos que nossos filhos não percam tempo brincando, que é coisa muito fuleira, e que tratem logo de revelar seus precoces dotes rumo à grandeza. E tudo isso por amor!
Entre as múltiplas preocupações que temos com os nossos filhos, em uma época tão incerta, teremos que acrescentar mais uma: a de protegê-los de nossas exigências delirantes.
Cuidar dos filhos é tarefa das mais difíceis, pois temos que nos haver com quão pequenos eles são. À primeira vista isto parece simples: é satisfatório ter em volta estes pequenos apêndices amorosos e custamos a deixá-los partir, então que problema haveria em que eles fossem tão dependentes?. A questão é que não gostamos de sabê-los frágeis, pois deixam de ser fantásticos, poderosos. Ficamos desconcertados quando adoecem, quando tem pesadelos, quando fracassam na escola, quando são tímidos ou excessivamente palhaços. Gostaríamos que nossos queridos querubins fossem sempre prodígios, sem falhas. Pequenas e poderosas posses dos pais.
Assim, a morte de Jessica tem muitos culpados além da tempestade. Mas com certeza, se pudermos refletir mais sobre o quanto esperamos de nossos filhos, talvez possamos permitir que eles sejam apenas crianças, e como tais, incompletas. Aliás… como nós.
Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, com o título “As Asas de Cera da Precocidade”, em 20 de abril de 1996
Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, com o título “Quem Matou Jéssica Dubroff?”, número 37, julho 1997.
jessica dubroff
jessica dubroff anjo
no céu de muitas estrelas
ela brilha
muito
eterno
eterna menina
com deus
adeus.
um acontecimento tão antigo, que é bom ver esta menina receber ainda alguma homenagem!
abraços
diana
Recordo-me como se fosse ontem… Uma vida que se extingue na mais tenra idade talvez por culpa da publicidade.