Ressaca dos anos 80
Sobre o filme Angels in America, AIDS
Nos anos 80, o movimento estudantil e outras vanguardas alardeavam pública e politicamente que João podia amar Pedro e a diversidade sexual era uma teoria e uma prática. Eram tempos pós-hippies, nos quais não se tratava mais de um contraponto hedonista para um mundo reacionário. A questão era de legitimidade social das diferenças. Foi nesse contexto que a epidemia da AIDS fez suas primeiras vítimas. É difícil encontrar alguém da minha geração que não tenha perdido algum ser querido naquela década, quando a doença mostrava suas garras e os remédios para controlá-la ainda não existiam. Parecia castigo divino, a ponto de que havia quem acreditava que o vírus era uma arma secreta, desenvolvida artificialmente em prol do moralismo e da normatização sexual. Obviamente tal teoria era delirante, mas como se manter lúcido frente a essa provocação do destino: quando finalmente o movimento gay começava a ser massivo, uma doença epidêmica vitimava fatalmente, principalmente os homossexuais masculinos.
Desde então houveram progressos: aprendemos mais sobre o controle e a transmissão da doença, estamos combatendo a contaminação, os portadores do vírus deixaram de ser vistos como leprosos e constatamos que a sexualidade é mais variada e confusa do que uma simples divisão entre homo e heterossexuais. Mas naquele momento a revolução sexual tirava a máscara da comédia e vestia a da tragédia. A contaminação desnudava as tramas ocultas. Ficou público que João amava Pedro, mas que este havia se envolvido com Maria, ou era casado com Teresa, que por sua vez o deixou para viver com Paula. Além disso, soubemos que o dr. Fulano, pai de uma família tão normal, freqüentava um rapaz com o qual passava momentos agradáveis. Algumas dessas tantas histórias, que a AIDS revelou de forma tão dramática estão retratadas em “Angels in América” (direção Mike Nichols, 2003). Originalmente foi uma peça, transformando-se em mini-série de TV pela HBO e está atualmente disponível em DVD.
A mini-série é longa, densa, bela, sofrida e conta com a magistral atuação de Al Pacino, Meryl Streep, Emma Thompson e Jeffrey Wright, ganhadores dos prêmios Globo de Ouro e Emmy por esta obra. Mas, acima de tudo, serve para homenagear os involuntários heróis daquele tempo de revelações, paranóias e perdas, após o qual a sexualidade nunca mais foi a mesma. Dali em diante todos ficamos cientes de que tudo é muito mais diversificado e, infelizmente, mais perigoso que se quis crer nos tempos do paz e amor. Além disso a AIDS revelou a força daqueles que eram tidos por florzinhas, fracotes e afeminados. Poucos machões mostraram tanta bravura, para enfrentar a dor física e o preconceito social, com tanta e aguerrida dignidade, o que vale também para quem cuidou dos doentes. Prepare seu coração, são 352 minutos, mas vale a pena, especialmente para os que ainda tem um nó na garganta pelos que se foram naquela década infausta.