Ressentimento

Sobre o livro de Maria Rita Kehl

Psicanalistas podem, e por vezes precisam, falar seu jargão, sua língua própria: palavras como ego ou inconsciente. Mas seu ofício é ouvir além do óbvio, portanto precisam também se apropriar de palavras corriqueiras e fazê-las vibrar em outras freqüências. Foi isso que a psicanalista Maria Rita Kehl fez em seu último livro chamado Ressentimento (Ed. Casa do Psicólogo).

O ressentimento é um velho conhecido de qualquer um que tenha sofrido uma mágoa amorosa, dos povos que foram submetidos a desagravos ou crueldades, de todos os que esperaram mais, muito mais do que receberam. Não se trata da tristeza de quem perdeu um amor, do trauma de quem foi maltratado, estas são feridas que doem, mas podem cicatrizar. Já o ressentimento é quando a mágoa é cultivada, incensada dia após dia no altar de nossos valores mais nobres. Como diz Maria Rita, é algo que alguém “quer não se esquecer, não perdoar, não deixar barato o mal que o vitimou”.

Vamos ao particular para entender o geral: digamos que eu tenha amado muito alguém que me traiu, que aquele a quem eu idealizava tenha se revelado um mentiroso, hipócrita e covarde. Vou sofrer, vou odiá-lo e estou coberta de razão. Mas em algum momento precisarei me perguntar qual foi meu papel no jogo que terminou com esse péssimo placar. Teria eu sabido amar? Teria querido participar de um triângulo, ou ainda me cegado para a natureza daquele escolhi? Estaria repetindo a desgraça dos meus pais mal-amados? Nenhuma dessas hipóteses justifica nada, nem sempre o perdão é possível, mas algumas delas podem fazer de mim, que me considero agravada, uma personagem ativa da minha própria história. Se optar pelo ressentimento, porém, continuarei alienada do meu destino, pois como jamais admitirei minha parte na trama, encontro no papel de vítima o amparo de pensar que estou em mãos alheias, que podem ser cruéis, mas não me deixarão a sós com a responsabilidade sobre meus atos.

Alguma conexão possível com todos os que se (nos) sentiram (mos) traídos pelos paladinos da honestidade, os políticos “limpos” em cujas mãos colocamos nosso futuro e fomos para casa dormir? Ao meu ver, toda. Lendo esse livro, que aliás tem um excelente capítulo denominado “Políticas do ressentimento”, senti-me no divã de Maria Rita. Que estou fazendo aqui, nas fileiras desse “exército de queixosos passivos”, cevando minha mágoa? Em matéria de política, gostamos de ver as coisas como se tivéssemos caído em mãos de um pai abusador, que nos prometeu amparo e profanou nossa inocência. Vamos e convenhamos, cidadãos não podem se comportar como crianças, pois se esse fosse o caso, o voto seria permitido no jardim de infância!

Ainda Maria Rita: “não há ninguém, além do reino desse mundo, que nos dispense de ser agentes de nossos destinos”. Ele não está nas mãos do pai perfeito, que finalmente pensávamos ter encontrado e que nos traiu, como gostamos de remoer, ressentidos e apaixonadamente ingênuos. A batata quente é minha, vossa, nossa, caro leitor… ou eleitor.

21/09/05 |
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Um Comentário
  1. Douglas permalink

    Boa tarde! Muito interessante este texto. Fiquei interessado em fazer a leitura do livro em questão.
    Obrigado!

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