Retrato falado de um tempo selvagem
Sobre o livro em quadrinhos Maus de Art Spiegelman
O cartunista americano Art Spiegelman é filho de judeus poloneses, sobreviventes dos campos de extermínio. Vladek, o pai, realizou feitos inacreditáveis na juventude, mas na velhice ficou paranóico e sovina ao extremo, continuou o resto da vida comportando-se como se ainda estivesse num campo de concentração, onde é preciso estar alerta, ser previdente e desconfiado. Anja, a mãe, era uma mulher culta e sensível, sobreviveu graças à ajuda de seu dedicado marido e à providência de algumas boas almas, mas era depressiva e acabou suicidando-se. Tantas provações não fizeram de Vladek um homem admirável aos olhos do filho, e Anja seguiu apagada. Tudo o que ela deixou foram seus diários, os quais foram queimados por Vladek antes que o filho os lesse. Do início ao fim, uma tristeza só.
Art cresceu no próspero Estados Unidos do pós-guerra, num tempo e lugar em que os dramas não vinham mais da rua, mas dos fantasmas domésticos. Antes dele, o casal teve outro filho, vitimado ainda menino, que se tornou uma sombra de irmão (perfeito) para o neurótico artista. Filho dessa geração de heróis por acidente, cuja proeza foi a própria sobrevivência, Art sentia que qualquer coisa que fizesse na vida “parece pouco em comparação com sobreviver a Auschwitz”. Ele não está só, muitos filhos convivem com o sentimento de que suas vidas são insignificantes frente às dos pais. Como é possível, para pais e filhos, um mínimo de compreensão mútua, tendo vivido tempos tão inapreensíveis uns para os outros? A tradução desse impasse está no lançamento Maus, livro em quadrinhos (Companhia das Letras), ganhador de um Prêmio Pulitzer em 1992.
Frente a esse abismo, Maus é pródigo em pontes e mistura de estilos. É um livro autobiográfico, pois parte do relato dos encontros de Art adulto com Vladek já velho, nos quais o filho lhe pede para contar as histórias do holocausto. Enquanto isso, sobre o presente eles discutem, se estranham e se desentendem. O filho evasivo, o pai invasivo. É também um livro documental, pois o relato do pai é minucioso e se traduz em mapas e detalhes, é a história do terror nazista descrita pela ótica prática e objetiva de Vladek. Maus é ainda uma síntese de linguagens, onde o desenho completa e amplifica os diálogos. Os judeus são representados como ratos (desprezados e sobreviventes), os alemães são gatos (predadores inclementes), os poloneses porcos (interesseiros e desleais), os americanos são cães (metáfora benévola).
Na guerra Vladek fez escambos, dissimulou, ousou, ajudou e se rebaixou, fez de tudo um pouco, conforme a necessidade da ocasião. Art também fez um pouco de tudo: desenhou, escreveu, se expôs, colocou diálogos teatrais, animais e mapas. Como artista mostrou o mesmo espírito combativo e onívoro que o pai dedicou à sobrevivência. Longe de ser uma simplificação, a linguagem dos quadrinhos produziu uma complexa versão desse tempo de terror. A ótica, desta vez, é a da geração de descendentes dos sobreviventes, na qual me incluo. A obra ajuda a entender e a nos aproximar de quem passou por isso.