Ruído Interno
O silêncio é um raro privilégio, nosso ruído interno o afoga em ruminações!
A imagem do descanso, que evocamos fervorosamente nesta época do ano, equivale a um lugar calmo, via de regra silencioso, onde se escutam, no máximo, os pássaros e o mar. Ao contrário, o pesadelo das praias têm sido a música alta, o barulho das festas, dos alto-falantes de propaganda, do trânsito. Tanta gente fazendo barulho num ambiente de repouso parece uma guerra aberta contra o silêncio, talvez porque ele saiba ser bem assustador.
Quando cessa o tumulto fora, inicia-se uma sinfonia dentro da nossa cabeça. São ruminacões, pequenas ou grandes paranóias, desejos difíceis de admitir, fantasias de grandeza, obsessões ou ressentimentos amorosos, pendências que se enfileiram para ocupar espaço na nossa mente. Esmagados pelo peso dos pensamentos indigestos que carregamos conosco, recorremos ao barulho externo, que cala essas vozes inoportunas. Por isso tantos “Magais” e seus asseclas. Mas há outra forma de livrar-se dessas vozes: projetando-as em outros sons.
Reportagem da Folha de São Paulo (13.10.2012) narra um problema comum a muitos síndicos profissionais: as queixas dos ruídos dos vizinhos. Conforme eles, é muito comum que os condôminos fiquem obcecados com sons provenientes da casa dos outros, que alegam tornar sua vida um inferno. Entre os vilões prediletos estão passos, relações sexuais, choro de bebê e a idéia de que alguém está batendo no chão ou fazendo tumulto de propósito para enlouquecer quem vive embaixo. O síndico é convocado a escutar o pesadelo do morador queixoso e alguns têm passado a noite no sofá do sofredor, em busca de provas do crime.
Com assustadora freqüência, o morador diz estar escutando os tais terríveis barulhos sem que o síndico possa se solidarizar, pois não está ouvindo nada, e estamos falando de gente hipoteticamente normal, do tipo que não ouve vozes. Neste caso, trata-se de alguém que está colocando, como se fossem fora de si, ruídos que na verdade são internos: o barulho assustador do sexo dos pais, o choro do irmãozinho indesejável, a festa à qual nunca somos convidados, os passos provocantes de mulheres arrumadas para noite.
Para as crianças que um dia fomos, o barulho dos adultos pode ser tranqüilizador, mas também inquietante. Quem não lembra do prazer de adormecer no meio de uma reunião social dos pais, com o ruído das conversas nos embalando, o tilintar de talheres e copos, a música, garantindo que não estamos sozinhos? Ao mesmo tempo, apavorados, escutávamos as discussões do casal, imaginando o mundo a ruir, os arrulhos de seus amores, sentindo-nos excluídos, à mercê do destino deles, aparentemente tão poderosos. Essa, a de crianças impotentes, é a imagem que me suscitam os vizinhos acuados pelos seus sons imaginários.
Quando crescemos carregamos conosco esse acervo, uma trilha sonora que toca em nossa cabeça mesmo quando não é convidada. Por isso, o silêncio é artigo de luxo, acessível a poucos. Usufruí-lo depende de calar essas vozes que se empenham em abafar o barulho do mar. Eis algo bom de se ouvir.