Sem medo da fratria

Resenha do livro Função Fraterna de maria Rita Kehl

Existem novos sintomas referentes ao mal-estar civilizatório, isso qualquer clínico pode atestar, o que sim podemos indagar se são novas máscaras  para velhas angustias ou se temos de fato sintomas novos.  Outra forma para essa mesma questão é pensar se temos hoje novas formas de subjetivação.

Quem está acostumado com a contribuição da psicanálise na tentativa de entender as mazelas contemporâneas é provável que já tenha ouvido a expressão: “declínio da função paterna”.  Em Lacan, que trabalhou bem o tema, era mais preciso: “declínio social da Imago paterna”. Tal expressão é geralmente apresentada para dar suporte  ao eixo de interpretações das mais variadas manifestações das novas formas de padecimento. Mas final o que querem dizer com isso?

Alguns dos novos sintomas que nos afligem ocorreriam por que o pai não é mais o centro e o organizador das garantias da subjetividade, o pai teria enfraquecido. Na verdade não  trata-se  do pai (este homem que concebe e educa um filho), releiam a expressão inteira, apenas o pai encarnaria uma função, representaria uma espécie de articulador.

Modificando a Imago paterna, no sentido de uma perda de poder, força ou efetividade, uma série consequências subjetivas são esperadas. O interesse dos psicanalistas se encaminha então para as novas formas de patologia ligadas principalmente às fragilidades: crises de pânico, maior número de depressivos, personalidades boderline, etc. Enfim, a clínica produz novas charadas e a psicanálise lança-se no encalço de sua decifração.

Numa análise verificamos quanto um sujeitos sua muito para viabilizar um destino. Os sintomas se constroem em uma tênue margem de liberdade frente aos grilhões com que uma rígida moral internalizada prende o sexo, e com ele toda a fertilidade de uma vida. O pai representa uma educação limitadora, a mãe uma tentação ilimitada e os sintomas uma  negociação possível com estes parâmetros. Se num primeiro momento as neuroses estavam ligadas a uma inflação do lugar paterno, de um pai que asfixiava o sujeito, opressivo na sua inflexibilidade, agora passam a ressentir-se e queixar-se de sua rarefação.

Na verdade existe uma contrapartida leiga de tal compreensão, só que toma o caminho inverso, e cai numa melancolia queixosa pela falta que o pai faria. Não é difícil escutar que “os bons tempos não voltam mais”. Tempos de cada coisa em seu lugar, um tempo onde a ambiguidade e a relatividade não existiam. Homem era homem, mulher era mulher, Deus estava no lugar certo e o mundo sabia para onde ia.

Tendo compreendido sempre o “pai” como uma função, uma espécie de cofre vazio onde cada tempo guarda seus valores, não foi estranho aos psicanalistas começar a escutar as queixas sobre o conteúdo e valor deste tesouro. A psicanálise não pôde pegar o compasso nostálgico pois nunca acreditou nesse pai como uma entidade efetiva, ele nunca existiu, apenas entende que faz parte da subjetividade moderna a ilusão de uma idade de ouro do pai tradicional.

O próximo passo é perguntar o que se faz depois disso, como lidar com esse novo momento, se o pai não faz mais de garantia para nossas parcas certezas? E quem poderá fazê-lo? De onde podem vir novas formas de subjetivação? Será que todos os laços sociais vão depender de um pai (vivo ou morto) que faça de terceiro aos semelhantes? Estamos fadados a essa única forma de subjetivação?

Estimulada por esse tipo de perguntas Maria Rita Kehl, psicanalista paulista, organizou um livro. A obra é o conjunto das respostas de alguns de seus colegas à pergunta que ela faz:  qual seria a função social possível dos irmãos? Qual o alcance possível do laço fraterno? Podem os irmãos, os semelhantes, os que são de uma mesma geração ou experiência, criar laços que façam uma função, que antes era paterna, com a mesma efetividade?

Trata-se de um projeto ambicioso. A pergunta desdobrada fica: estamos diante de novas possibilidades de subjetivação? Precisamos de um novo paradigma para dar conta das subjetividades contemporâneas? Enfim, a função fraterna aponta para um novo conceito?

Os que respondem ao chamado são figuras representativas da renovação da psicanálise brasileira: Jurandir Freire Costa, Luis Cláudio Figueiredo, Ana Costa (a única Portoalegrense), Leandro de Lajonquière e Joel Birman. A própria organizadora também tenta definir o que seria esse laço fraterno. Em excelente ensaio, analisa o grupo de RAP os “Racionais MC’s”, como exemplo do que ela anda querendo teorizar.

A idéia tem tudo para ser antipática aos analistas. Existe um consenso entre eles, mesmo entre as mais variadas tendências, de que os irmãos, sem uma referência paterna só fazem o pior. O edifício freudiano não pode ser pensado sem uma figura central de pai. Começar a questionar isso é pecado capital. A crítica vai vir rápida, sem alguém que faça a função paterna o que teremos é a psicose. Talvez essa seja a resistência mais difícil: fazer crer aos analistas que uma iniciativa dos irmãos nem sempre seria parricida, não necessariamente haveria um pai oculto e pode não desembocar na barbárie, na perversão nem tampouco na psicose.

Na verdade não se trata de substituir a função paterna pela fraterna, mas de como a frágil amarração da função paterna pode ser escorada pelos irmãos e quais as consequências desse apoio.

As instituições analíticas são a própria prova da dificuldade dos analistas em lidar com os iguais. Salvo raras exceções, as instituições só subsistem na medida em que se escoram num pai fundador. A dispersão atual dos analistas é o fruto de não se entenderem enquanto pares, por isso as associações de analistas se contam às centenas.

Para a psicanálise o nascimento subjetivo se dá quando alguém se descola da “mãe”, também entendida aqui como um articulador que transcende à senhora que ocupa o cargo. A mãe é o lugar de origem, e o parto não termina no centro obstétrico, é o longo e doloroso processo de construção de um ser humano diferente daquele que o gerou. Quem faz essa função de separar  mãe e bebê é que é chamado de “pai”, aliás pode nem ser um homem, pode ser qualquer um, pode estar ausente mas presente na fala da mãe.

Que as relações humanas continuem a ser pensadas a três, não é a questão desses autores, precisamos algo que opere o corte do cordão umbilical neste outro parto, o subjetivo. A questão é se devemos esperar que esse “terceiro” seja exclusivamente  paterno ou se outra coisa possa surgir. Haveria um novo laço social em curso?

A verdade é que somos todos órfãos. De deuses, de utopias, de ideologias, de alguma coisa que faça de âncora. Uma das maneiras de se definir nosso momento histórico é o de falta de garantias, não há nada nem ninguém que aponte caminhos seguros. Será que não é tempo da psicanálise também aventurar-se a relativizar suas certezas sobre a preponderância da função do pai?

Publicado no Caderno de Cultura da Zero Hora em 11 de novembro de 2000

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