Sou visto, logo existo
Sobre o Big Brother e Reality Shows
Quando Orwell escreveu 1984 ainda tínhamos quem olhasse por nós. A guerra fria disputava cada centímetro da terra para sua visão de mundo, éramos como filhos de pais separados que discutem quem manda mais. Ele previu a continuação do totalitarismo sob a forma tecnológica do olho que tudo vê: o “Grande Irmão”. Antes era Deus, para Orwell era uma televisão. Hoje estamos sós.
Somos muito visados, porém só condição de consumidores universais. Interessada no bolso e não na alma, a propaganda seduz mas não julga. Em última instância, ninguém, seja divindade, potência ou multinacional, parece interessar-se pelo destino de cada um. Foi aí que começamos a instalar câmeras, como as webcams, que transmitem via internet imagens toscas de lares e pessoas chatas. Blogs, ou seja diários on-line, oferecem notícias sem importância e confissões pueris. Reality shows criam situações e lugares que podem ser acompanhados ao vivo pela televisão.
De tanto em tanto surgem preocupações com a invasão na privacidade de telefones e correspondência, supondo que as intimidades de cada um seriam objeto de espionagem seja comercial ou política. Por que somos tão ciosos de uma intimidade que temos compulsão de expor, compartilhar e profanar?
Não dispondo de grandes transcendências, cabe aproveitar a temporada sobre a terra porque a continuação é incerta. Hoje precisamos ser apreciados individualmente e dentro do prazo de validade. É preciso ser visto para ser lembrado, para existir.
O olhar tornou-se assim não um objeto de perseguição, como temia Orwell, mas de primeira necessidade. Ele acertou quando situou o olhar como o grande remanescente que nos acompanharia para a modernidade, a diferença é que ninguém precisou impor o grande olho, ele não é objeto persecutório, é objeto de desejo.
Sem fé nem esperança, restou o cotidiano. É uma pena que estejamos reduzidos a um registro tão infantil, interessados em assuntos tão domésticos. O Big-Brother, assim como seus similares, são uma Big-Mother, a única a quem importa a higiene, a alimentação e as banalidades de cada um. Nem a visão apocalíptica de Orwell supôs que iniciaríamos um milênio tão desamparados e carentes.