Telefone sem fio
Resenha do livro de Celso Gutfreind sobre Pequeno Hans
Vou contar uma história, que fica dentro de outra história, que fica dentro de outra história. No início do século XXI, Celso Gutfriend escreveu sobre o relato de um caso escrito por Sigmund Freud um século antes. O caso é a Analise de uma fobia em um menino de cinco anos, popularmente conhecido como “pequeno Hans”.
O texto de Freud, por sua vez, é baseado nos encontros dele com o pai do menino. Eles discutiam sobre as conversas que Max Graf, um musicólogo simpático à psicanálise, mantinha com o filho, Hans. Na origem desta seqüência está o menino, que contava para seu atento pai as histórias malucas de seus pesadelos e brincadeiras. No princípio está o verbo da criança, seguido das conjecturas e preocupações de seu pai, acrescentado dos questionamentos e teorizações do psicanalista que escreve e continua na releitura do Celso, enquanto esta resenha segue o baile lendo o texto de Gutfriend. Ora direis, isso é um telefone sem fio!
Provavelmente é isso que somos: um telefone sem fio, é assim que a história de cada ser humano se constrói, de narrativas que se continuam, complementam, de encontros e até de mal-entendidos. Quando crianças, pensamos sobre as coisas importantes da vida de um jeito meio estranho. Fazemos hipóteses sobre o que nos faz ser um homem ou uma mulher, sobre a origem dos bebês, sobre o poder dos nossos pais, sobre a possibilidade de que nossos desejos se realizem. Nessa época, tudo isso é muito complicado, pois se até depois de crescidos ainda ficamos nos perguntando o que é ser de um sexo ou de outro e por que mesmo a sexualidade mexe tanto conosco? Imagine quando ainda não possuímos suficientes dados para analisar o problema, nosso corpo ainda não mostrou as evidências do que nos tornaremos, o pênis e o clitóris se expressam, mas não entendemos o que dizem, a vagina se oculta silenciosa, os seios e os pelos estão longe de despontar. Quanto ao sexo, a falta de conhecimento e experiência leva-nos a imaginá-lo animalesco, fantasioso ou simplesmente incompreensível. Pior mesmo é a sensação de que podemos estar em perigo ou mesmo nossos sentimentos podem ser danosos. Podemos até desejar que as pessoas mais queridas morram, desapareçam, mas é só um pensamento raivoso, depois passa. Mas… se tivermos esse poder? Além disso, os grandes sabem ser tão imensos, como ogros, gigantes ou monstros, fazem e dizem tantas coisas estranhas, enquanto as crianças sentem-se tão minúsculas.
Frente a isso, por que não deixar as crianças fazendo e pensando suas ninharias até que virem gente e digam algo que preste? Por que ficar escutando-as, discutindo sobre o que elas falam? Por que diabos dois psicanalistas, separados entre si por um século, um adulto, o pai, e nós mesmos nos ocuparíamos do que disse um menino de cinco anos, em 1908?
Celso explica: Hans foi a primeira análise de uma criança, apesar de que ocorreu de modo pouco clássico, através das impressões do pai. O filho tinha medo de cavalos, fantasias com a irmãzinha, os pais, o cocô e com seu corpo, passou um tempo sem poder brincar na rua ou passear, e tudo isso se solucionou através dessa seqüência de conversas entre pai e filho, entre pai e psicanalista. Somente uma vez Freud e Hans se encontraram, materializaram-se um para o outro, tiveram um papo meio enigmático, como se tem em geral com as crianças (quando falamos a língua delas) e seguiu o telefone sem fio.
Celso lembra que essa analise infantil inaugural foi fundamental porque eles não tinham a pressa que hoje temos de curar para que a criança desempenhe suas tarefas e, principalmente, não se disperse em devaneios. Ora, como se pode passar a infância desse jeito, se ser criança é distrair-se, para colher os dados com os quais fantasiaremos pelo resto da vida? Hans, hoje, para ser mais contemporâneo, não seria fóbico, seria hiperativo, desatento.
Celso frisa que o trabalho de Freud era avançado mesmo em relação aos primeiros analistas que se ocuparam delas. Estes revelaram muito sobre suas fantasias e jeito de ser, mas não compreendiam o quanto era importante acolher e tratar também seus pais, além de que tinham pressa de teorizar e urgência de interpretar. O pai da psicanálise deixou-se surpreender pelo menino, mesmo quando ele parecia discordar dos seus textos: O Pequeno Hans mostrou Freud negociando feito um pagão, apesar da fé em suas teorias (p.83). Foi a atenção que Freud dispensou ao pai que ajudou a diluir os sintomas fóbicos. Hans concluiu que nada do que lhe ocorresse acarretaria a destruição da família ou seu abandono. Max, seu pai, também concluiu de que era grande o suficiente para proteger e compreender seu pequeno.
Celso, um psicanalista que também é escritor e poeta, opina que fazer análise tem sido pensado mais como fazer História do que desvendar segredos (p.53), e acrescenta, interpretar também é construir uma história, talvez seu clímax, seu epílogo (p. 73). Aqui voltamos ao tema do telefone sem fio. Quem conta um conto aumenta um ponto, ou seja, aumenta o valor do que é narrado. Valorizar a conversa miúda de uma criança do começo do século passado, voltar a contar o encontro desta com os adultos que se ocuparam tão seriamente dela, é celebrar a época da infância como ponto de partida da trama de narrativas de que somos tecidos. Óbvio que ao chegar ao mundo já nos aguardavam as histórias de nossos pais e antepassados, seus segredos e anseios: somos obras abertas (p.80), influenciadas pelo que dizem de nós, para nós e conosco.
Analisar, educar e governar já foram consideradas por Freud profissões impossíveis. Pelo menos, as duas primeiras tornam-se factíveis com conversa fiada, no bom sentido (p.88),como nos ensina Gutfreind em seu livro As duas análises de uma fobia em um menino de cinco anos- o Pequeno Hans: a psicanálise da criança ontem e hoje. Título longo, pois trata-se de uma longa história, composta a várias vozes, repleta de fantasias e fantasmas. Igualzinha à nossa.
VC TEM RAZÃO, A VIDA SE COMPARA A UM TELEFONE SEM FIO,CADA GERAÇÃO CONTROI SUA PEQUENA HISTORIA DENTRO DE UMA GRANDE HISTORIA .