Testrálios

Sobre Harry Potter, elaboração da morte e uma tragédia aérea

Um dos importantes ingredientes da receita de sucesso da saga de Harry Potter é a coragem de incorporar questões delicadas na literatura dos mais jovens. Destaco três: a tristeza, a solidão e a morte. Numa passagem do quinto livro, que agora ganhou sua versão cinematográfica, encontramos a alusão a um certo tipo de cavalo alado. Feios, com uma cara draconina, corpo esquelético e olhos vidrados, os Testrálios além de serem inteligentes animais de tração, possuem uma característica particular: só podem ser vistos por aqueles que já encararam a morte. Harry Potter, que presenciara a morte de seu amigo Cedric, pode enxergá-los, enquanto para seus amigos as carruagens da escola parecem andar sozinhas.

A ficção antecipa verdades aparentemente incompreensíveis da nossa alma e eis um exemplo. De fato, a percepção daqueles cuja vida a morte roçou com seu manto é radicalmente diferente da dos outros que não tiveram essa má sorte. No livro, os alunos de Hogwarts comentam a crença de que esses animais fantásticos dariam azar, mas o professor os esclarece que sua visão não é prenúncio, é conseqüência. Também é por essa confusão que muitas vezes, em nossos tempos obcecados pela eternidade juvenil, os idosos são tão mal tolerados, considerados agourentos pela sua proximidade com o fim.

Há várias formas de presenciar a morte e possuir uma relação estreita com sua existência. É preciso ter sofrido alguma doença potencialmente letal, ter perdido alguém essencial ou viver um momento dramático de guerra ou catástrofe. Essa experiência nos divide em duas categorias, a dos que possuem uma relação apenas intelectual com a morte, afinal ninguém consegue ignorar sua existência, e a dos que já fitaram seus olhos vidrados. Ao longo da vida todos acabamos enxergando Testrálios. Na velhice, quando espreitamos a escuridão que nos espera no fim do túnel, os Testrálios já são um estado de espírito.

O trágico acidente aéreo recém ocorrido ingressou muitos de nossos conterrâneos na categoria daqueles que convivem com a realidade do fim. Muitos passaram a ser daqueles que por ter perdido abruptamente algum ser muito amado, passaram a sentir uma solidão abissal, uma tristeza tão grande que é inefável, tão absurda que parece incapaz de ser compreendida.

No filme, o jovem Potter conversa com uma menina que havia perdido a mãe, é ela quem lhe explica o fenômeno, no livro é um pouco diferente, ele constata que outros alunos partilhavam suas percepções. Foi fundamental para Harry descobrir que não estava maluco, que não estava vendo coisas, que havia outros como ele. A dor de uma morte assim pode nos deixar loucos, torna-se uma presença perene e silenciosa, é uma esquina virada na vida após a qual a paisagem nunca mais será igual. Resta aos outros, que possuem a felicidade de ainda não enxergar esses tristes mensageiros da morte, oferecer uma solidariedade respeitosa que minimize a solidão dos que sofrem.

08/08/07 |
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