Tocando a vida juntos
O verdadeiro convívio abala o narcisismo herdado da primeira infância: a capacidade de tocar a vida juntos é prova de uma maturidade nem sempre alcançada.
Todas as pessoas solitárias,
de onde elas vêm?
A que lugar elas pertencem?
Eleanor Rigby/Beatles
Juntos– simples assim – é o título do livro de Richard Sennett que inspira a jornada deste ano do Fronteiras do Pensamento. O autor, que foi músico de formação clássica antes de trabalhar nas teorizações com que hoje nos brinda, parece ter aprendido muito no trato com os instrumentos e com a experiência de tocar em conjunto.
Seu mestre na música certa vez disse: – Ouçam, não leiam! Propunha que os músicos escutassem uns aos outros como prioritário à leitura solipsista da partitura. Não há uma forma única de interpretar as notas que aparecem indicadas, a sintonia do grupo depende de que se estabeleça um diálogo, sonoro mas sem palavras, entre as opiniões de cada um a respeito da expressão daquela melodia. O resultado será fruto da colaboração e das diferentes referencias pessoais, do estilo, da cultura de origem, assim como da tendência de cada um à suavidade ou à estridência.
Nunca fomos tantos e jamais tão sós. Talvez por isso, e não somente pelo prazer que nos proporciona, o sexo é uma obsessão contemporânea, pois trata-se de experiência obrigatoriamente partilhada. A vida erótica sempre envolve mais alguém, nem que seja na imaginação, e essa outra criatura nos confunde e assusta até mesmo na fantasia. Quanto aos vínculos menos carnais, as redes sociais, tentativa virtual de recuperar o perdido sentimento de viver em comunidade, também são sintoma disso. Elas produzem uma comunicação frenética e igualmente pobre, onde impera o que Sennett chamou de “tribalismo” – a solidariedade entre aqueles que se parecem e agressão aos que são diferentes.
O verdadeiro convívio, esse dom tão esquecido, necessário para levar uma tarefa adiante, é como o dos músicos: obriga a escutar as peculiaridades de cada um e as diferenças para afinar o tom com os outros. Aliás, “Juntos” poderia muito bem ter se chamado “Outros”, esses conterrâneos que tratamos como alienígenas. Eles costumam atrapalhar muito toda a onipotência que herdamos da primeira infância, aquele pensamento mágico no qual fantasiamos que o mundo dobra-se à nossa vontade
Na recomposição do nosso fragilizado tecido social, avariado pelo egoísmo, pela desigualdade e pela violência, o autor sugere que sejamos empáticos. Ele contrapõe esse estado de espírito às atitudes aparentemente solidárias, onde nos dirigimos ao outro que precisa de compreensão ou ajuda pensando “sei perfeitamente como você se sente”. Isso é falso, podemos deixar que os outros nos envolvam e inquietem, mas nunca compreenderemos perfeitamente o que eles sentem ou pensam. Já a atitude empática passaria mais por “estou atento a você”.
Essa escuta curiosa, que nos contamina com os questionamentos e inseguranças que vêm dos outros, é velha conhecida dos psicanalistas. Ao contrário do que se pensa, de que esses profissionais da escuta sempre sabem o que está por trás do que dizem os pacientes, a verdade é que ignoram do que se trata e que rumo vai tomar. Somente graças a essa humildade é possível descobrir novos caminhos para velhas questões, descobrindo conjuntamente alternativas às soluções meio tortas e dolorosas que cada um foi improvisando sozinho.
Curiosamente, gostamos de ver um grupo trabalhando afinado e aproveitando os diferentes estilos de cada um, mas apenas na ficção e principalmente no que diz respeito ao mundo do crime. No vínculo entre ladrões, que Sennett chamou de anjo sombrio da cooperação, o que nos cativa são os grupos que se unem para usurpar e seu trabalho não propriamente constrói algo. Como se vê, sabemos o valor da tarefa partilhada que nos torna criativos e eficientes, mas desenvolvemos uma perigosa urticária a tudo aquilo que é útil e construtivo. A rica e desafiante experiência da colaboração entre aqueles que são diferentes serve para fazer assaltos bem sucedidos, mas também para a criar e descobrir, para a arte e a ciência. A vida é a arte do encontro, cantava Vinícius, a possiblidade de fazer algo juntos, acrescentaria Sennett.
(publicado no Caderno Especial do Fronteiras do Pensamento 2015)