Trancadas
Sobre a tendência feminina à prisão de ventre
O tubo digestivo tem duas pontas, a entrada e a saída, a primeira é pública, a segunda é privada. A primeira é motivo de celebração, a segunda é motivo de nojo e fonte de palavras que só podem ser usadas para ofensa ou desprezo. A comida é pura, ou pode ser purificada por higiene ou rituais. As fezes são impuras, deixam-nos sujos e contaminados. Comer é bonito, defecar é feio. Isso só não vale para os bebês.
No princípio da vida, quando comer e descomer é a forma privilegiada de expressão, opinamos escatológicamente sobre tudo. Enquanto bebês, a cor, a freqüência e a consistência do cocô dizem do nosso estado de saúde e de ânimo. Só então fezes são assunto de família, do casal, das consultas médicas, da conversa cantarolada da mãe com o filho. Todo esse estardalhaço fecal um dia sucumbe, junto com a infância. É jogado na privada e no privado.
A partir daí a história se bifurca, e cabe às mulheres o papel de serem mais recatadas do que os homens. Já fiquei com pena das atrizes das propagandas de laxantes na TV. Achei muito vexame. Ora, não faltam propagandas ridículas e nunca tinha pensado assim antes, é que aqui se trata de um tabu. Uma mulher, declarando publicamente que faz cocô. Vergonha! Porém, se algo nos faz corar, é óbvio que não é indiferente. Se as mulheres não vão ao banheiro, ou vão inutilmente por vergonha, repressão ou inibição, isso se deve a que suas fezes são um tema e tanto.
As tais propagandas nos oferecem duas coisas: alívio e beleza. A primeira não precisa de explicação, porque a barriga estufada dói, incomoda. Mas a segunda não se deve somente ao ventre lisinho, mais que isso, ter que defecar é que nos enfeia. Um homem pode ir ao banheiro e sair se achando bonito, mas para nós, qualquer defeito é o fim. Mulher não é em partes, é um todo, sempre quer o Oscar pelo conjunto da obra. Por isso não pode ter mácula, desproporção, manchinha, celulite, unha lascada, raiz sem pintura e o estampado da calcinha tem que combinar com o brinco. Somos obsessivamente detalhistas. Como então se pensar como uma fábrica de cocô? Além disso, tampouco comemos em público com muita facilidade. Que atire a primeira pedra a mulher que consegue entregar-se a uma comilança em frente de alguém a quem queira impressionar, uma conduta anoréxica faz parte do kit de atrativos a oferecer.
Somos controladas na entrada e na saída. O ideal contemporâneo de ascese e disciplina corporal afeta muito às mulheres. Por isso, nada entra e nada sai de nós assim no mais. Para nós, a libertação da mãe é um pouco mais complicada do que a dos homens (que seguem eternamente apaixonados por ela), as filhas mulheres precisam superá-la, roubar-lhe o posto para serem tão femininas como ela. Após o divórcio litigioso com a nossa mãe, exorcizamos a maior fonte de diálogo materno-infantil: o tubo digestivo. Fazemos dele um tabu. Em público comemos como passarinhos (já escondidas…) e, principalmente, não mostramos o nosso cocô a ninguém.
Mulher não tem barriga, tem ventre, e materno, quer queiramos preenchê-lo de gente ou não. Lá dentro ocorrem constantes abalos sísmicos: ovulamos, sangramos, colicamos, inchamos e murchamos num ciclo incontornável. O ventre se governa, e uma das formas que temos de impor nosso comando sobre ele é defecar ou não. Quer inchadas, quer esvaziadas e aliviadas, parece que assim mandamos mais do que os malditos hormônios que nos levam à loucura feminina mensal.
Defecar ou não defecar, eis mais uma questão feminina. Afinal, trata-se de poder decidir sobre o que transita dentro de nós. Em termos de sexo estamos a anos luz de nossas avós, era de se esperar que fossemos perdendo todos os espartilhos e não que andássemos duras e trancadas. Mas ainda estamos em busca de um convívio pacífico com o corpo. A prisão de ventre talvez seja ainda uma seqüela da luta pela nossa almejada soberania sobre ele. Com o tempo aprenderemos a relaxar. Espero.