Travessura de um Mestre
Sobre o historiador Decio Freitas
De um jeito ou de outro, todo portoalegrense já ouviu falar dos crimes da rua do Arvoredo. Em meados do século XIX existiu um açougueiro, José Ramos, que transformou homens em lingüiças. As vítimas eram atraídas a seu estabelecimento por artimanhas sensuais de sua bela mulher. Catarina Palse, assim se chamava, era uma húngara e relacionava-se sexualmente com as futuras vítimas, além disso o desmanche dos cadáveres contava com a ajuda de um corcunda e, por último, o açougueiro costumava banhar-se, e ir ao Theatro São Pedro assistir à opera após seus crimes. Essa história reúne os elementos de tragédia e escândalo que o consumo popular exige, temos o mal, o sexo, a morte e o canibalismo.
Freud dizia que nossa civilização se assenta em três interdições: o incesto, o canibalismo e o assassinato. Esse caso inflama nossa imaginação por que dois tabus são levantados. O tempero das lingüiças e desse episódio está no canibalismo involuntário, pelo qual os incautos confundiram seus semelhantes com uma iguaria, tornando-se cúmplices inconscientes do crime. Diferente dos povos que o praticaram como ritual (jamais como um alimento banal), nossa civilização respeita a separação entre os vivos e os mortos, onde a morte é um tabu a ser tratado com distância e reverência.
Em 1996, historiador Décio Freitas escreveu O Maior Crime da Terra (Ed. Sulina) que emprestou caráter histórico a esse episódio, através de detalhes e relatos provenientes de documentos. Em 2004 foi lançado outro livro, do historiador Cáudio Pereira Elmir, A História Devorada (Ed. Escritos), o qual conclui que o livro de Décio era obra de ficção, baseada no imaginário social associado a um crime que tem apenas pálidas coincidências com a “apetitosa” história. O problema é que Décio jamais mostrou a ninguém os documentos nos quais se baseou, enquanto que Elmir tampouco o buscou (ele ainda estava vivo no decurso de suas pesquisas) para discutir pessoalmente a veracidade dos fatos. Os detalhes dessa polêmica podem ser lidos em matéria da revista Aplauso n.62. Devemos concluir que Décio mentiu?
Décio aparentemente coloriu cientificamente uma lenda urbana, enquanto Elmir não teve coragem de desmascará-lo em vida. Para ambos ficou dif ícil reduzir essa história de canibalismo às cinzas do esquecimento e acabaram recontando-a, mantendo-a viva. Mais forte que os fatos falam os traumas e nossas fantasias inconfessáveis. Por sorte existem as lendas urbanas para contar as histórias que se esqueceram de acontecer. Porque um historiador não poderia ter cometido a travessura de contá-las, sabendo que elas produzem tantos efeitos quanto certos fatos históricos? O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil observou que é uma grande ironia que essa história tenha reverberado tanto num povo tão carnívoro como o gaúcho. Acredito que Décio, depois de tudo que já nos legou como historiador, nos pregou uma peça e legitimou uma lenda para Porto Alegre. Realmente, ele foi um intelectual muito generoso.