Um adolescente de meio século

A atualidade do “Apanhador no campo de centeio” Quando um texto aniversaria, tendemos a dizer-lhe o mesmo que a uma pessoa: “estás jovem!”. Por isso no cinquentenário do “Apanhador no campo de centeio” o óbvio seria comentar a sua atualidade e o quanto ele foi inovador.   É perfeitamente possível lê-lo, se subtrairmos as referências históricas, […]

A atualidade do “Apanhador no campo de centeio”

Quando um texto aniversaria, tendemos a dizer-lhe o mesmo que a uma pessoa: “estás jovem!”. Por isso no cinquentenário do “Apanhador no campo de centeio” o óbvio seria comentar a sua atualidade e o quanto ele foi inovador.   É perfeitamente possível lê-lo, se subtrairmos as referências históricas, como o discurso contemporâneo de um adolescente.

O livro é o relato de três dias na vida de um jovem de dezesseis anos. Holden Caulfield tem cabelos grisalhos, quase dois metros, fuma, bebe, opina e sente frio. São três dias em que tudo e nada acontece, o personagem está vagando após a expulsão do colégio e ainda não quer chegar em casa. Neste espaço de tempo ninguém o espera em lugar nenhum  e nesta pequena  eternidade compartilhamos a análise do mundo que Holden frequentava.

A delícia do livro emana da inteligência com que o personagem desmonta as ambições e crenças de seus colegas, professores, ex-alunos da escola, artistas. Em linguagem depretensiosa, casual, vai desnudando a alma de todos com quem se cruza ou de pessoas de quem se recorda, montando um leque de personagens que embora seus contemporâneos, não perderam a atualidade.                                  

Holden não consegue entrar em sintonia com ninguém, embora faça esforços de inserção na busca de quem o escute. Esse eterno desencontro proporciona um olhar de exterioridade sobre o mundo que habita e, realmente, visto de fora tudo parece ridículo. No passado perdido parecia haver alguma esperança de interlocução: o irmão que morreu, o outro irmão escritor, antes de “se prostituir em Hollywood”,  a amiga a quem não revelou seus desejos eróticos, estes poderiam entendê-lo, mas estão mortos ou ausentes. Compartilhando a sua solidão gelada chegamos a um único encontro, Phoebe, a irmãzinha de 8 anos, somente ela quer ouvi-lo mais do que falar-lhe. De todas as questões do personagem, a mais contundente, é que ninguém suporta escutá-lo. 

Holden critica a tudo e a todos, duvida de qualquer solução, e uma das alternativas que se coloca é desistir. E se, em vez desta guerra pelo sucesso, construíssemos uma cabana na natureza, tendo que lutar apenas pela subsistência? Não se trata de uma visão romântica apenas, mas de um discurso que atravessou o movimento hyppie, assim como todas as alternativas juvenis que se quiseram construir à sociedade capitalista. É precisamente esta postura  que elevou J.D. Salinger, autor deste livro, à categoria de mito.

Além de escrever este livro, que tornou-se uma espécie de “carta de fundação da adolescência”, o autor é um eremita, famoso pelas recusas de contato com o a mídia. A questão levantada pelo personagem e pela atitude do autor é a de uma abstinência das metas, valores e principalmente destas centenas de bugigangas com os quais os adultos se rodeiam, encontrando aí a prova de seu sucesso.

O sucesso deste texto sempre foi atribuído a a ser fiel e premonitório. Temos todos os motivos para pensar que  nos útimos 50 anos não houve mudança substancial no discurso adolescente. Ou melhor, poderíamos dizer que a adolescência enquanto fenômeno, continua sendo uma resposta aos propósitos de que foi incumbida, principalmente a partir do pós-guerra. Mais que uma resposta, a adolescência é uma reação. Não é de forma alguma novidade que os jovens tenham um papel social definido. Rituais de iniciação e sistemas de ensinamentos constituem para a juventude um espaço desde a antiguidade. A novidade, que tem mais ou menos a idade deste livro é a de um período da vida para o qual a sociedade não tem espaço e, se o tiver, o jovem fará o possível para criar uma alternativa ou simplesmente não ocupá-lo. O espaço social da adolescência é o limbo.

Costumamos associar a adolescência com a época dos acontecimentos, das escolhas, mas ela é antes de tudo uma experiência de melancolia e procrastinação. Quando finalmente tomamos alguma decisão ainda somos jovens, inexperientes, pretensiosos, mas já estamos deixando de ser adolescentes. Não me refiro, por exemplo, a fazer uma escolha vocacional, mas a assumi-la. Qualquer um sabe a diferença que há entre entrar em um curso universitário e o momento de realmente estar se preparando para uma profissão, entre ter experiências amorosas e sexuais e fazer escolhas amorosas.

 A adolescência é justamente o tempo de uma suspensão, como poderia dizer  transição, passagem.  A compreensão crucial é que este espaço intermediário precisa ser considerado legítimo, escutado, acompanhado.  Pedir ao jovem que assuma as consequências do que pensa é remete-lo a um tempo de resoluções que ainda não chegou. A relação com o mundo é experimental, o que não impede de amar, aprender e até trabalhar.

Existe uma regra que ninguém deveria desrespeitar: a inteligência do discurso adolescente não é instrumentalizável, ela não serve para nada. É claro que serve, e muito, para o sujeito que cresce: será a matriz de seu projeto de vida, é nela que ele está formatando sua versão de ser a partir da criança que ele não é mais. O importante é não pedir ao sujeito provas, nenhuma pragmática redunda de seu trabalho psíquico, porque a adolescência é uma experiência de suspensão da vida.

A adolescência é idealizada pela sociedade dos adultos como sendo uma época de potência, confundindo o potencial de fazer escolhas, verdadeiro pesadelo para os jovens, com a potência de possuir todas as alternativas. Ao adulto, melancólico de maturidade, parece que o jovem pode possuir todas os amores, todas as profissões, viver no mundo inteiro, frequentar todos os amigos. Nada mais falso. Dois trechos poético-literários, separados por meio século, são a melhor tradução do que estou tentando dizer:

O primeiro é cantado  por Renato Russo: “Quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar para todo mundo, que eu não precisava, provar nada para ninguém” (no disco Legião Urbana – Dois)

O segundo sai da boca de Holden Caulfield, o personagem do livro, que assiste a apresentação de um pianista muito bem quisto do público, numa casa noturna de Nova york:  “Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso ia ter raiva de viver. Não ia querer que me aplaudissem. As pesoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um  armário”        Mais que espetáculos artísticos, Caulfield assiste principalmente o teatro da vida dos jovens de seu tempo: o estudante atleta que se entrega a carícias ousadas no carro com as moças, o jovem feio que vence na vida como comerciante, o intelectual estufado que só escuta  a sí mesmo, a moça burra e bonita, a inteligente que cede ao assédio do medíocre bonitão, assim como todo tipo de coitado que sofre por não conseguir se inserir nestes papéis. Estes são personagens da narrativa  de Caulfield, mas ele não quer ser nada disso, não quer provar nada para ninguém, quer ficar no armário, ir para uma cabana na floresta.

A vivência individual dos impasses do adolescente não é suprimida por nenhum tipo de aglutinação grupal. Caulfield pode ser visto indo ao teatro, com amigos num bar, dançando, saindo com uma garota, visto de fora parece que tudo corre normalmente. Por dentro, porém, ele se sente caindo.        

 O livro intitula-se a partir da resposta que Holden dá à sua irmã sobre o que vai querer ser quando crescer. “Eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer , se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo.“

Ao longo destes dias ele frequenta constantemente esta borda, mas ninguém está lá. Como em toda história adolescente, os pais e professores não estão, ou se estão não parecem falar a mesma língua. Só uma criança, a irmãzinha Phoebe,  se dispõe a escutá-lo. A ausência dos pais faz parte da vivência adolescente, quando o jovem se separa, mas se sente expulso. Porém, só isso não explica toda a solidão, é preciso buscá-la na dificuldade de suportar o que ele sente e diz. O jovem fala de tristeza, vontade de desistir, quando o que esperamos dele é vigor juvenil, potência, hormônios em euforia.

A tristeza é o outro lado da moeda do desejo.  Para aquele que se lastima, nem nada, nem ninguém será capaz de produzir a felicidade, tristeza é a falta de felicidade.  Somos capazes de qualquer negócio para suprimi-la: crenças místicas, auto-ajuda, remédios, placebos e analgesias, tudo menos enfrentar as questões que ela nos assopra aos ouvidos.

É dela que fala o adolescente, quando escutado a sós,  fala da tristeza dele e da de todos nós, de um potencial de covardia, de insatisfação que quando amadurecermos será adormecido mas nunca eliminado. O adolescente fala daquilo que o adulto experiencia sob a forma de depressão.       

“Começou a acontecer um negócio um bocado fantasmagórico. Cada vez que eu chegava ao fim de um quarteirão e descia o meio-fio, tinha a sensação de que nunca chegaria ao outro lado da rua. Pensava que ia caindo, caindo, caindo, e nunca mais ninguém ia me ver.”  Descreve Caulfield.

O psicanalista inglês D.W. Winnicott fazia referência a necessidade de que os adultos não abdiquem de sua condição, de que sobrevivam, no sentido de manter vivas suas premissas éticas, ao processo dos adolescentes com que convivem. Com isto este autor lembra que o nosso adolescente interior está sempre pronto para nos perguntar “será que precisa mesmo tudo isso?”, e nós adultos estamos sempre prontos para desistir. Por isso a tristeza é nosso maior fantasma e a adolescência sua mais clássica encarnação.

Fala-se incansávelmente da incomunicabilidade de Salinger, o autor, por outro lado sabemos que o “Apanhador” tem atravessado gerações. Interessante que possamos dizer que está incomunicável alguém que escreveu algo que continua tão vivo meio século depois…

Em verdade não há contradição entre o autor e sua obra. O livro é como a  adolescência: depois de adulto não se tem com ela mais comunicação direta, tentativas de reeditá-la não passam de acessos caricaturais de mania. Ela fica lá, quieta, muda, eremita. Mas o que nela vivemos, sofremos e aprendemos está como um livro na estante. Se o consultarmos de tanto em tanto ele será eloquente, sempre pronto a apresentar um parágrafo que não tinhamos visto antes.

Se chegamos à idade adulta é porque tinha alguém na borda do precipício disposto a nos apanhar, é bom lembrar disso, porque temos que estar lá quando for nossa vez de cumprir este papel. Como diz Holden Caulfield, este é o trabalho mais importante que um adulto tem a fazer.

 Publicado no “Correio da APPOA”, número 94, ano IX 
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