Um psicanalista suficientemente narrativo
resenha do livro “A infância através do espelho” de Celso Gutfreind
Não é preciso ser órfão para ser adotado. Que o diga o escritor Celso Gutfreind, que cansou de “ser adotado” por escolas inteiras. Os alunos costumam ler e discutir algum dos seus livros (são 31, muitos deles de literatura para crianças), até o grande dia do encontro com o autor, onde conversam e o questionam.
Em um desses eventos, ele comentava a história de um personagem, um garoto que sofria de rejeição amorosa – Liana, sua amada, não aceitara o convite para dançar – quando um aluno fez uma pergunta fulminante. Questionou se, caso Liana pedisse para ele se matar, acederia. Assustado, o autor, que também é psicanalista de gente grande e miúda, respondeu que não, até o amor tem limites. Os olhos foscos do pequeno interlocutor não disfarçaram a desilusão: essa não era a resposta certa. Por essas intuições que os psicanalistas e os poetas têm, sim o autor também é poeta, ele tentou outra resposta: – Puxa, se é por amor, tem seu charme.
A afirmação foi arriscada, poderia estar autorizando o suicídio e nunca se sabe. Mas como poetas e psicanalistas vivem de cutucar a fera, conforme escreve ele, acabou falando o que parecia conveniente naquela hora. Depois soube pela professora que o menino era filho de um traficante morto e uma mãe suicida. Foi aí que entendeu que acabara de oferecer a uma criança órfã uma história em que amparar-se. O garoto passou a ser filho de um casal que se amava, onde sua mãe se matara por amor ao pai. Talvez não tivesse sido bem assim, mas era uma boa versão, a melhor possível para ele.
Nos anos de jovem psicanalista, Celso doutorou-se na França, onde conduziu um trabalho com crianças institucionalizadas, privadas de suas famílias. Vê-se que a orfandade lhe é íntima. A estas, propôs uma terapia com contos de fadas, que as deixou menos a sós com suas feridas incuráveis. Neurose e trauma entram onde a poesia falhou, explica-nos ele. Por isso mesmo decidiu que a literatura, forma derramada da poesia, poderia restituir algo do que a vida havia lhes arrancado. Para tanto, nada melhor do que histórias maravilhosas que foram lapidadas e consagradas por séculos. Se não era possível recuperarem os pais, pelo menos ficariam com algo do que eles teriam lhes dado caso tivessem podido continuar com seus filhos.
Para este psicanalista prosador, a narrativa é a forma em que os pais passam de fora para dentro de seus filhos. É como lhes deixam seu legado e os ajudam a nascer subjetivamente. Para tanto, alcunhou o termo “mãe suficientemente narrativa”, neste caso, representando ela o mar de histórias em que somos nutridos, banhados e batizados. Aqui vale contar outra história.
Há uma década atrás, escrevi com Mário um livro sobre psicanálise dos contos de fadas. Foi nessa ocasião que conhecemos Celso, na época já uma referência no assunto. Pedimos para utilizar e mesmo brincar com a expressão de sua autoria, falando de “pais suficientemente narrativos”. Ele aquiesceu, mas atribuiu a origem do termo a um colega francês, a quem já havia recorrido para consultar a fonte da ideia. O detalhe é que aquele tampouco lembrava em que ocasião teria alcunhado a expressão e assim ela acabou referida a uma comunicação oral.
Assim, o que era para ser um conceito, digamos, científico, pois fazia parte de uma séria tese de doutorado, acabou filiado a uma tradição narrativa, onde aquele que conta lega a autoria ao que escuta. É isso que fazem os pais, quando são suficientemente narrativos, é por isso que ele afirma que a mãe é literatura para o bebê. No caso dele, isso não é retórica, é pesquisa acadêmica, mas também é experiência clínica, é a vivência de ser pai e a de autor suficientemente adotado pelos seus pequenos leitores.
Chegamos então ao último de seus livros: A infância através do espelho, que está sendo lançado pela Editora Artmed. São dessa obra as histórias que conto aqui. Ao longo de duzentas páginas, ele tece as várias modalidades de vínculo entre a literatura, que diz ter sido sua primeira psicanálise (e Mário de Andrade um de seus primeiros analistas) e a teoria que hoje é a base de seu ofício de psiquiatra. O livro transita entre contos de fadas, relatos jocosos sumamente divertidos, histórias clínicas e a análise de obras poéticas como a de Emily Dickinson, Bandeira, Drummond. Longe das formalidades, além dos autores consagrados, ressalta o lirismo de uma frase proferida por uma pequena paciente: – Espremi tuas orelhas e saiu leite.
Se das orelhas de um analista pode verter esse líquido fundamental, é justamente graças à arte de transformar lacunas em boas e bem contadas histórias. Por bem contadas entenda-se que não se trata de prêmios literários, mas da eficácia da narrativa. A psicanálise como ciência é a arte da esperança, ensina-nos, e enquanto prática, insiste, é possibilitar o desenvolvimento da capacidade narrativa.
Uma última história para finalizar. Celso tinha um avô que fumava cachimbo, tomava cachaça, contava piada com sotaque polonês carregado no erres. Desde cedo propôs: – Escreverrrás a minha histórrria. O neto esperou, mas a história não vinha. Teve paciência, ficou por perto e entre goles e gols de partidas compartilhadas, o velho foi soltando seus causos, aventuras, guerra, a perda dos pais. Mesmo assim, para atender ao pedido de contar a história dele foi preciso incluir as lacunas, pois nem tudo consegue ser dito. Mas tenta-se. A isso o neto crescido dedicou sua obra.
O Dr. Gutfreind se explica: Até hoje a narração é cheia de silêncios, criptas e nós. Até hoje ela é poesia, mesmo quando se propõe a ser ensaio. É poesia para os vãos da prosa do meu avô. É fundamental saber dessa história para compreender o estilo da escrita marcada por essa missão. Ela legou, sem sombra de dúvida, um psicanalista suficientemente narrativo.