Uma magra na sala e…

Sobre as fantasias associadas ao preconceito com os obesos.

“Gordinha é como pantufa, todo mundo gosta de usar mas ninguém sai de casa com ela!”

Eis como uma amiga descreve sua vida amorosa, não pouco atribulada. O problema é que seus parceiros costumam desaparecer antes do sol nascer. Ela acha que fazem isso por vergonha de ser vistos em sua companhia, o que seria um ponto negativo para o currículo deles. Talvez ela tenha razão nessa inquietude: quem come mais do que devia acaba sendo, a princípio, um tipo de transgressor. Gordura, fruto da gula, passou a ser o pior pecado capital…

Talvez, para nossos tempos em que a imagem é tudo, a gorda represente um novo tipo de mulher proibida, da qual acredita-se ser possuidora de um tipo de luxúria oral. Capturada nessa armadilha de fantasias, minha amiga sente-se exilada das relações amorosas legitimadas, relegada a uma espécie de bordel da imaginação.

Hoje como ontem, dá muito trabalho parecer uma mulher recomendável. Agora é preciso suar pela boa forma e cobrir formas irregulares, comer quase nada em público, bronzear-se (sob supervisão dermatológica, claro) e ocultar marcas da idade. Parceiras jovens ou “bem conservadas” pontuam mais. Se necessário, como um dócil objeto de Pigmalião, terão que recorrer à lipo-escultura. Carnes brancas e flácidas não ficam bem. O espartilho, agora invisível, impera como nunca.

Gordinhos representam a tentação e são condenados por viver alheios à cultuada abstinência, por não destilarem em suor suas impurezas. Eles não têm os volumes nos lugares certos: seios fartos, traseiros carnudos, mas a barriga lisa, conforme apregoado pelo cânone da Barbie. Mas, se hoje as garotas podem exibir suas formas em decotes intermináveis e saias sumárias, não seriamos finalmente corpos liberados? Não é o que parece, pois só pode ser visto o que estiver dentro das regras. E com tantas regras a seguir, o exercício e a fome acabam se constituindo numa espécie de burka internalizada. Já o implante de silicone é a voluptuosidade domada.

Os gordos evocam um desejo fora de controle. É como se comendo impudicamente burlassem o trabalho civilizatório, esse que nossa selvageria interior sempre ameaça. Evoluímos para nos alimentar sem voracidade, no lugar da compulsão, queremos ver a força de vontade. Boas maneiras e boa forma são ditadas pelo mesmo manual de etiqueta, essa que nos faz parecer tão ponderados e adequados. Idealizadas magérrimas mulheres francesas que saboreiam mini porções são o antônimo dos estigmatizados gordos, apresentados como selvagens devoradores de montanhas de fast-food. De fato, há gordos que comem sem prazer, só para se estufar, afogar a ansiedade, mas não é só disso que a obesidade é feita. Porém, a verdadeira pergunta é por que isso é mais condenável do que o igualmente estranho prazer de passar fome?

O momento pede pratos exíguos: comida fina que parece natureza morta, de alto apreço estético e baixo valor calórico. A mulher magra e musculosa é tida como a boa moça, enquanto a gorda – não precisa ser uma obesa mórbida, basta fugir ao padrão – evoca prazeres pouco domesticados. Os mais interessantes. Outrora, ressaltando os territórios da boa conduta e o indispensável tempero do proibido, dizia-se às moças que lhes cabia ser como uma dama na sala e uma puta na cama. Quem sabe, agora mudamos a frase, para lhes recomendar que sejam como uma magra na sala e uma gorda na cama?

10 Comentários
  1. Excelente seu texto. Já pensei como sua amiga, mas hoje estou em paz comigo. Uma reflexão que todos precisamos fazer, mesmo que seja para tomar a decisão da mudança em relação à comida, que se faz necessária não pelos padrões obrigatórios das barbies siliconadas, mas pelo nosso bem estar, saúde, cuidado com a gente mesmo. Parabéns!

    • Diana permalink

      pior é que comer saudável é até bem gostoso, ruim é fazer isso achando que nos tornamos grande coisa só por cuidar do corpo…
      obrigado pela leitura
      abraços

  2. Que a tradução do que se passa ficou perfeita demais, amei cada construção, cada palavra. Muito bom!!!! Aplaudi de pé!!!!

  3. Jorge Falkembach permalink

    Diana.

    Sabes quando a gente se imagina batendo palmas…
    Teu texto me sugeriu esta situação…
    Mais que bom!!!
    Beijos e abraços
    Tio Jorge

  4. Carmen Ferrer permalink

    Claro que adorei !!! acho inclusive que esse assunto teria que ser cada vez
    mais discutido… Tenho 60 anos e vejo essa tal de obrigração de ser inteira !!!nada é dito é sempre na subliminar… a sensação que se tem é que n se tem mais espaço para envelhecer… uma amiga minha riu muito quando comentei que eu queria ter os 60 de antigamente… (claro que é um pouco de exagero ) Outro dia, a filha de uma amiga estava de aniversário e resolveu comemorar num barzinho qualquer… nós fizemos o que chamamos a mesa das velhinhas… foi assustador !!! só entravam meninas (+ou- 30 anos) todas produzidas encima de uns sapatos, que só de olhar me dá frio na espinha e ënrroladas ” nuns vestidos tipo enfaixadas que apenas cobria a bunda… é estou velha…. Há e a proporção de homens era de 1 para 20….

    • Diana permalink

      descer dos saltos é um descanso!! (apesar de que nunca soube direito andar em cima deles, portanto, vale como metáfora…)
      obrigado pela tua leitura!
      abraços
      diana

  5. Rodrigo permalink

    Bem interessante o texto.

  6. Marta permalink

    Não tô afim de formular aqueles comentários enormes, carregados de filosofia e de cumplicidade…. Mas queria só dizer que amei o que acabei de ler…

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