Uma mulher de verdade
Sobre o filme Simone
Pigmalião esculpiu em mármore a mulher dos seus sonhos, hoje ela certamente seria concebida em imagem digital. Quando uma história insiste cabe-nos observar com cuidado a especificidade de cada versão. É o caso desta alusão cinematográfica à clássica história grega Pigmalião que é o filme Simone. Para quem não viu, Simone é na verdade “Simulation One”, uma personagem construída em um programa de computador, capaz de mixar todas as melhores características da beleza e da alma feminina. Um diretor fracassado, derrotado pela dificuldade de lidar com as estrelas cinematográficas, que sobrepunham seus caprichos narcisistas ao seu trabalho de atriz, cria esta obediente e perfeita atriz virtual, mas oculta do público sua inexistência real. O filme vale mais pela idéia inicial, pela referência ao mito, do que pela produção em si. Na narrativa clássica, a estátua ganha vida após seu escultor se apaixonar por ela e pedir a Vênus para casar com uma mulher que fosse à imagem e semelhança de sua criação, comovida por este amor a deusa opta por dar vida à pedra. Já Simone não é para uso pessoal, esta mulher obra prima é uma atriz, concebida em sua perfeição para o público, que a coroa com uma enlouquecida tietagem. A criatura ganha vida no amor dos fãs, num feitiço que foge ao controle do feiticeiro e este se torna prisioneiro da ilusão que infundiu.
A instabilidade das relações amorosas contemporâneas reflete uma sede de encontrar o amante ideal, revanche contra o destino que nos fez tão sub-dotados frente ao que deveríamos ser. Simone é amada pelos fãs, que apaixonados vêm nela o que querem ver. Qualquer paixão é cega, a tal ponto que até os eleitos por ela se estranham no papel, supondo que estão sendo objeto de um amor que transcende suas qualidades, esperando o fim do encantamento como inevitável. Separações e dificuldades de vínculo resultam da busca vertiginosa por uma alma gêmea que satisfaça esta exigência: “diga-me quem amas e eu te direi quem és”. Só um ser humano de mentira faz bonito neste papel. Na versão moderna do mito, o poder da deusa Vênus está agora nas mãos dos fãs, uma massa sedenta da ilusão desta mulher perfeita, feita da síntese das divas que o cinema já produziu. Em “Mitologias” Barthes escreveu sobre Greta Garbo: “exibia uma espécie de idéia platônica da criatura, era necessário que seu rosto tivesse por única realidade a da perfeição”. Hoje o cinema é um Olimpo, onde atores são transformados em objetos tão irreais quanto Simone, estátuas esculpidas pelo cinzel do medo das imperfeições.