Uma rata libriana

Os vários rótulos nos tranquilizam, parecem nos explicar. Porém, o que de fato somos é a improvável síntese que fazemos entre esses desígnios e a aventura específica da vida de cada um.

Sou uma rata: amo um duelo verbal, cuido dos meus. Convém manter-me ocupada em um ambiente desafiador. Caso contrário, por inquietude, me tornarei gananciosa. Assim entendi meu signo no horóscopo chinês. Seria assim por ter nascido em 1960.
Apesar de gostar de usar as palavras a meu favor, sou de Libra, dou vários dedos da mão para evitar uma briga, mudo de opinião facilmente, ponderando a força do último argumento na rodada de discussão. O que realmente me importa é que o grupo fique harmonioso. O problema é que, graças ao ascendente em escorpião, tendo à manipulação. Foi assim que entendi, provavelmente de uma maneira grosseira, meu modo de ser a partir da astrologia.
Talvez os psicanalistas mais afeitos à psicopatologia não tivessem dificuldade em me considerar uma histérica, pela irreverência petulante e sedutora. Nos testes de Transtorno de déficit de Atenção e Hiperatividade me vejo revelada. Enfim, como muitos, quanto a comportamentos seus, ou de seus filhos, depois de descobrir que eles tem uma síndrome ou complexo.
Enfim, sei que estou sendo leviana com vários campos de estudo, mas as referências acima são meramente ilustrativas, resultado de uma busca onívora por algo que me explique. Inserida em uma categoria, mesmo que seja a de uma doença, sinto-me menos solitária e errada. Porém, sou pouco afeita a generalizações, talvez por libriana, histérica ou dispersiva.
Meu ofício, a psicanálise, sobrevive no oposto dessas premissas tranquilizadoras. Ele se baseia em que cada um de nós é ímpar, recebe um nome em especial e a missão de protagonizar sua própria biografia. Para usar uma metáfora banal: recebemos uma mão de cartas, ao acaso, mas precisamos ater-nos às regras do jogo, o resultado vai depender dos jogadores.
Visto a partir das pesquisas das ciências humanas – ou mesmo desde a astrologia – é obvio que o lugar e hora de nascimento serão decisivos. É fato que a constituição do corpo determinará limites e potencialidades. Lugar, época e natureza constituem o ecossistema, o habitat, mas nessa paisagem corre um rio subterrâneo que tudo altera: o inconsciente. Ele vai perverter prognósticos, bagunçar previsibilidades, driblar limites ou sucumbir a eles. Nossa natureza dialoga com nossa história, mas isso nos é detestável, se há uma grande tentação é a de culpar algo fora de nós pelo nosso destino. Se há um grande terror é a força desse mesmo destino, cuja aleatoriedade é soberana. Pelo menos, se há uma certeza possível é que de perto somos surpreendentes.
Para não afogar-se nas águas subterrâneas do inconsciente, vale a pena ter curiosidade pelas correntezas, enchentes e redemoinhos desse rio. Meu instrumento de trabalho, a associação livre, consiste em convidar os pacientes a falar de modo a dizer o que lhes vier à cabeça, dando lugar a pensamentos inusitados. Com eles, vamos detalhando as coordenadas do mapa único, que nasce e morre com cada um de nós.
A parte da rata eu já entendi, mas o que me torna peculiar são os outros bichos – alguns papões – que carrego por dentro. Sem contar com o zoo que me espera do lado de fora.

30/09/22 |
(0)
Nenhum Comentário Ainda.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.