Uma Suástica Particular

Texto sobre recalques da história, no caso do nazismo

Já há alguns meses um fato rapidamente ganhou manchetes em todo mundo e sumiu tão rápido como veio. Uma jovem adolescente alemã, paraplégica, teria sido agredida por neonazistas por ter se recusado a cantar junto com eles refrões nazistas. Dada a recusa teriam eles lhe desenhado uma suástica no rosto a canivete. A foto da agressão (parcial do rosto) acompanhava as manchetes.

A resposta foi imediata, quem sempre acreditou que o governo alemão é frouxo com esses delinqüentes achou mais um motivo para protestar. O estado também foi rápido, montou uma operação policial gigantesca. Paralelo a isso tudo houveram manifestações de rua e os protestos diplomáticos de praxe vindos de todo o mundo.

Mas a policia não tinha pistas,  apesar do fato ter acontecido em um lugar público não haviam testemunhas, nada avançava. Os médicos que a atenderam foram os primeiros a dar-se conta de que algo estava errado, o tipo de ferimento era o mesmo dos encontrados em auto-mutilações.

Não sem uma frustração descobre-se que tudo fora forjado pela, até então, vítima. Descoberta a mentira cessou o interesse, a menina é tachada de ter problemas mentais, eufemismo para louca, diga-se, e não se fala mais nisso. Ora, será que isso, a farsa, não torna o fato ainda mais interessante? Teria feito, disseram os médicos que então se ocuparam do caso, para chamar a atenção. Muito perspicazes, imputaram-lhe orientar-se por algo que estamos todos todo o tempo ocupados em fazer: chamar a atenção. Está bem, mas por que justamente dessa maneira?

É certo que nos escapa o mais geral das questões individuais dessa jovem, mas que o nazismo para ela é central não deixa muita dúvida. Pois mesmo que concordássemos em chamá-la de maluca, isso não desqualificaria o conteúdo que emergiu. Pelo contrário parece-me ser um bom ponto de partida. Em todo caso poderíamos dar um desconto a esses profissionais, pois, até agora, o neonazismo só vem sendo tratado como caso de polícia.

Não nos revelaria a Spaltung dessa jovem alemã algo sobre a alma da sua geração? Dessa geração que já não viveu a guerra senão por relato, que soube por seus pais a guerra que os avós fizeram, que já cresceu na Alemanha reconstruída. Viveu e viu sim as conseqüências da guerra  esvaziar-se, ou seja, a guerra fria e a reunificação. Mas retomando, não teria esse gesto algo de paradigmático do comportamento de um setor dessa geração, da dificuldade de lidar com esse passado? Será que esse caso não poderia nos ajudar a pensar que um “complexo de neonazismo” poderia ser mais amplo do que somente ficar nos cretinos que se dispõem a sair na rua paramentados?

Essa questão, quando toma alguém, parece não deixar muita margem para maleabilidade, ou bem se é vítima ou agressor. Alguns sociólogos que estão tateando sobre a questão do  neonazismo nos dizem que o perfil do neonazista é de alguém socialmente desfavorecido, que geralmente provém das camadas mais baixas, mais pobres ou com menos possibilidade de inserção e reconhecimento social. Ou seja, aqueles a quem só o fenótipo livra de se confundirem com os turcos aos quais atacam. Até que ponto são nazistas para não serem turcos? 

Propriamente não há uma sociopatologia da assimilação histórica, casos como esse  deixam-nos pensando que tal estudo faz falta. Nada testemunha melhor da dificuldade de toda a Alemanha de lidar com essa questão do que uma lei recém aprovada: essa lei abre espaço para criminalizar declarações que neguem os campos de extermínio. Quem incorrer fica enquadrado em incitação ao ódio racial. A lei é simpática mas cria um precedente problemático: uma história oficial. Recurso praticamente não usado em regimes ditos democráticos.

É fácil, no caso do nazismo, dizer que se tratam de significantes paternos  muito difíceis de simbolizar, que é uma herança feita um caroço indigerível variando conforme as trajetórias particulares. Mas e daí?  … um passo a mais é que são elas, o que é mesmo que torna algo inassimilável e em que circunstâncias? Quantas gerações ainda serão necessárias para que o nazismo pare de produzir suas vítimas?  Credito nas vítimas inclusive esses pobres-diabos neonazistas, ignorantes que são de sua condição de fantoches de de um resto histórico que se repete como uma trágica e perigosa farsa.    

Voltando à menina, diga-se que não é uma Spaltung que encontramos todo dia, a mão direita recortando a face esquerda, algoz e vítima num mesmo corpo. Uma coisa ela já comunicou ao mundo todo: ela não quer nada com o nazismo. Mas este insiste e lhe retorna na carne,  mostra-se não passível de ser recalcado. Se é que podemos falar de recalque quando o pretenso retorno tem mais magnitude que o que se quis recalcar, o nazismo dela acabou ficando “na cara”. A verdade é que não temos muitos dados para pensar qual mecanismo de fato atuou e podemos escorregar numa ficção clínica estéril.

Num primeiro momento este caso parece chamar a atenção mais pelo bizarro, mas é o que menos nos interessa; é um caso raro onde a questão social invade a cena clínica de modo tão explícito que nos faz recordar aquilo que deveríamos ter sempre presente.Lacan nos deixou uma fórmula, tão simples mas de desdobramentos nem de todo explorados: o inconsciente é o discurso do Outro. Para além de tantas outras interpretações, a fórmula nos ajuda a acabar com a clássica divisão entre neurose individual ou social, é sempre social com características idiossincráticas. Para demonstrar isso, esse caso não poderia ser mais elucidativo.

O  interessante é pensar: como é que ela sai dessa? Como é que tantos vão sair dessa? Se escrevo é porque fiquei deveras preocupado com essa menina, que destino pode se ter depois de tal sucesso? Por enquanto, assim de longe, só podemos recomendar a ela o filme de Spielberg, a Lista de Schindler que talvez seja de grande auxílio para muitas pessoas, afinal, mostra que é possível ser nazista, deixar de ser nazista e ainda ser reconhecido como herói. Mostra que é possível outro lugar que não de agressor ou vítima. Aliás é um filme que resgata a nuance onde ela nunca foi permitida, na maneira como o cinema contou a guerra, um nazista humanizável não cabe no script, uma Alemanha cindida, não toda tomada na fúria nazista tampouco.

19/05/94 |
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