Versões do abismo

Sobre o livro de Eliane Brum, “Uma:duas”, relação mãe-filha e jornalismo e ficção.


Alguma coisa acontece quando um jornalista se aventura na ficção. Narrativa assumidamente inventada, a literatura é livre, solta da verdade, conscientemente narcisista, ignorante da realidade. Já o repórter voa como um balão de gás preso a um cordão, não pode nem deve desconectar-se, pois dele esperamos um mundo menos incompreensível. Ser bom numa profissão é arcar com as utopias que ela carrega: a do jornalista é de que a informação seja confiável, de que podemos fazer a soma das versões e ter como resultado a verdade. São os jornalistas nossos olhos, ouvidos e pernas extra, graças a eles podemos transcender e compreender o que de relevante se passa além das nossas estreitas fronteiras.

Ao contrário do óbvio de seu ofício, que é fazer de seu trabalho telescópio, satélite, olhar maior, Eliane Brum sempre trabalhou com o microscópio. Pois não é somente o que está longe que nos escapa. Assim em suas reportagens, livros e documentários revelou gente que está conosco, mas não é visível a olho nu, experiências de vida, miséria, morte e superação às que nunca prestaríamos atenção. A peculiaridade desse trabalho sensível um dia ainda ia acabar em ficção, e assim foi.

Dar voz pública às mulheres trouxe como consequência a oportunidade de divulgar seus pesadelos típicos, entre eles o maior: o de afogar-se nas águas abissais da relação mãe-filha, uma luta corpo a corpo, onde uma fenece para que outra desabroche. É sobre isso o primeiro livro de ficção de Eliane: “Uma:duas”, publicado pela Leya. Sua personagem Laura é uma filha que procurava tirar a mãe do seu corpo, sabendo que sem isso, nada sobraria. Como sair das entranhas, sem poder partir completamente?

Mulheres precisam ocupar um corpo que a cada dia se torna mais semelhante ao da própria mãe. Minhas filhas tinham pavor da “Maria Degolada”, o fantasma de uma mulher assassinada, lenda da tradição de Porto Alegre. Dizem que se nos trancarmos no banheiro e gritarmos três vezes seu nome ela aparecerá no espelho. Elas tinham razão, para nós mulheres os espelhos sempre guardam uma assombração, é a cara da nossa mãe, é a nossa cara da mãe.

Mesmo navegando na fantasia, Eliane, a jornalista, não podia deixar de ouvir os dois lados. o pesadelo simbiótico tem duas versões, mãe e filha escrevem o que sentem sem ler uma à outra, cabe a nós a acareação da verdade inexistente. Elas se odeiam e amam com paixão e nos conduzem por sua dolorosa separação. É uma reportagem nos abismos. Eliane invadiu os divãs, os pesadelos das mulheres e de lá, mais uma vez, trouxe notícias quentinhas.

08/06/11 |
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5 Comentários
  1. Fabiane permalink

    Diana, fiquei instigada, como sempre acontece com teus textos, a ler este romance de Eliane Brum. Li, recentemente, “A vida que ninguém vê” que toca pela profunda sensibilidade no olhar de Eliane sobre gente aparentemente comum, encontrando na vida oculta o surpreendente mistério e a singularidade capaz de virar história.

    • Diana permalink

      A eliane empresta à notícia uma dimensão inusitada, muitos se interessaram pelo aparentemente irrelevante, mas poucos emprestaram tanta dignidade aos retratados como ela!
      abraços
      diana

  2. Diana, como jornalista, conheço Eliane Brum e admiro seu trabalho. Estou curiosíssma para ler este primeiro livro de ficção dela, porque os outros são estupendos, fortes, intensos, sensíveis, reais. Mas precisamos da fantasia também e, embora escrevendo sempre sobre a vida real, adoro ficção. Daí minha curiosidade pelo livro, e ainda mais agora depois do seu texto.
    E conheci você, também por intermédio da Eliane, em um dos textos que ela fez sobre A Psicanálise da Terra do Nunca, muito bom, por sinal.
    Parabéns pelo seu texto e pelo seu trabalho. Abs.

    • Diana permalink

      gracias! nunca serei suficientemente grata à leitura que a eliane fez do nosso trabalho!
      abraços
      diana

  3. Maria Helena permalink

    Gostei.É muito interessante sentir o que leitores e amigos da Eliane são capazes de “extrair” do que ela escreve.É como se cada leitor reescrevesse para si o que ela escreveu para todos. Sou suspeita para falar nela…é minha afilhada,portanto desde que não tinha a “fama” de hoje,é uma pessoa especial,desde que era ainda uma “pessoinha” ! Viajarei 500 km só para viver seu lançamento,um grande momento para nós,sem dúvida. Lá conversaremos o demais. Até.

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