Vida de cão
Sobre o filme Dogville
Dogville é um filme absolutamente cruel. Ele é cruel com as ilusões que vamos buscar no cinema, aniquilante com o desejo de ver alguma qualidade humana nas mentes simples. Ao longo de três horas, uma protagonista que evoca o trabalho de Cinderela, as intenções de Polyana, os revezes de David Copperfield e tantos outros emblemáticos altruístas sofredores, vive seu martírio sem nenhum dos paliativos que estes encontraram. Nada de bom se revela na alma humana ali, os pálidos momentos de harmonia ou esperança só servem para aumentar a altura do tombo. O diretor Lars Von Trier rompe o pacto histórico do cinema com seu público de garantir alguma forma de catarse.
É teatro filmado: pela pobreza de cenários, figurinos, trilha sonora e a ausência todos os recursos que garantem que no escurinho do cinema seremos aliviados de nós mesmos. Ela é evocativa de “Minha Cidade”, peça clássica de Thornton Wilder, também ambientada numa cidade sem casas específicas, com apenas alguns objetos ilustrando o cotidiano medíocre e rotineiro das famílias. Para Wilder, viver é “mover-se dentro de uma nuvem de ignorância; ir para cima e para baixo pisando os sentimentos dos outros”. Porém, ele concede aos seus personagens o paliativo de que devem ser perdoados pois não sabem o que fazem.
A heroína faz de tudo para ser aceita como habitante do lugar e é persistente em provar que o bem mora em uma cidadezinha bucólica do interior. Ela também acha que a maldade dos habitantes de Dogville é uma forma de fraqueza, que está sempre disposta a perdoar. Mas a crueldade deles vai longe: Grace é escravizada, estuprada, torturada e chantageada. Quanto mais ela persiste em sua missão de oferecer seus préstimos em troca de um lugar no coração dos outros, mais lhes desperta a ganância perversa de servir-se dela, de reduzi-la a objeto de um exercício de sadismo coletivo. Sua bondade militante vai funcionando como revelador da perversão alheia. Por isso a cidade de Von Trier não tem paredes, apenas traços no chão definem o contorno das casas: para demonstrar que quando um ser humano não sabe qual o lugar do outro, ele o invadirá, colocando-o ao serviço das suas mais mesquinhas vontades. Escravizar os outros está ao alcance de cada um, só um complicado sistema de separações, demarcações de identidade, garante que nos respeitemos. Por isso os filhos precisam se afastar dos pais, a intimidade dos casais tem seus limites em termos de amizade e a amizade tem seus limites em termos de intimidade. A conclusão de Dogville é de um ceticismo como poucas vezes o cinema ousou. A ingenuidade só nos trará sofrimentos, precisamos mesmo é respeitar as paredes necessárias, ser diplomáticos na fronteira do território alheio.