Viver no zapping
Sobre o hábito de ficar trocando de canal como metafórico de nosso modo de viver
A vida é um capital de tempo que recebemos em usufruto. Procuramos investir nela o melhor possível, mas raramente estamos satisfeitos com os resultados. Ao cada fim de ano, assim como no encerramento de cada etapa (aniversários, formaturas, casamentos, partidas, separações, aposentadorias, enfim, com quantos fins temos que lidar!) somos impulsionados a um espírito de balanço, no qual, contabilizamos perdas e ganhos, assim como o aproveitamento do tempo e das oportunidades. Sabemos que nossas atitudes determinam o destino que teremos, o que é uma consciência importante de se ter. Graças a isso, dificilmente um de nós atribuirá suas desgraças ou conquistas a alguma divindade ou ao acaso, sem sequer perguntar-se como influenciou no processo. Somos tão cônscios de ter um papel ativo na vida, que até quando ficamos doentes tendemos a nos culpar pela desgraça. Mas o maior problema é quando isso nos paralisa: face às oportunidades que temos ou que poderemos criar, queremos escolher tão bem, que entre todos os pássaros voando, ficamos sem nenhum na mão.
Uma boa metáfora desse impasse é o hábito de zapear (que dizem ser dos homens, mas é encontrável nos jovens de ambos os sexos, talvez no futuro será unisex). Armados do controle remoto, de certa forma brincamos de escolher. Na verdade não importa realmente assistir a alguma coisa, o melhor é sentir que se tem muitas opções. Mas depois de passar a noite inteira assistindo ao “programa-controle-remoto”, despertamos vazios de lembranças, apenas com a vaga memória de certos flashes desencontrados.
Também é uma forma de zapear quando vamos a um lugar público e escolhemos a olho uma conquista amorosa descartável, da qual em breve estaremos liberados para prosseguir na busca de renovadas opções. Nesses casos, mais vale uma sucessão de experiências rápidas, que não impliquem em perda de tempo na grande missão de busca da felicidade, seja lá o que isso for. Zapeando na telinha, no amor ou na vida, terminamos dedicando a vida, ou à noite, à celebração do ato de escolher. Ficamos acampados nas encruzilhadas, jogando cartas com o diabo. Vivemos um idílio com a variedade de opções, como se num restaurante o melhor prato fosse o cardápio. Talvez por que, de fato, na nossa temporada sobre a terra acabamos escolhendo bem menos do que gostaríamos, já que estamos fadados a ser influenciados pelos restos do passado (pessoal e familiar) que sobrevivem em nós.
Viver com o controle remoto na mão não representa a liberdade de escolha. Essa modalidade acaba sendo a pior das ilusões, pois nos faz escravos da indecisão. Ficamos na poltrona, contentando-nos com fragmentos de vínculos, migalhas de pensamentos e a falta de experiências realmente intensas. Acredito que fale a pena optar por algum canal, quer seja ele um amor, um trabalho ou uma vocação. Esses são meus votos de ano novo: pague para ver, assista algo até o fim.